Cena de O Aprendiz (Reprodução)

Filmes

Crítica

O Aprendiz faz bom uso do grotesco para perverter a biopic americana

Sebastian Stan e Ali Abbasi fazem dupla formidável em filme sobre jovem Trump

05.11.2024, às 15H02.

Quando falei sobre o último filme de Ali Abbasi, Holy Spider, no comecinho do ano passado, apontei que a predileção do diretor irano-dinamarquês pelo grotesco, às vezes esbarrando no horror corporal, se chocava de formas tortas com a história do serial killer misógino que ele buscava contar - a sensibilidade errada para o filme certo. Pois bem: em O Aprendiz, exibido na competição pela Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, este Abbasi do monstruoso escondido por debaixo do mundano, da perversão inerente das culturas e das cidades, cai como uma luva para contar a gênese de uma das figuras políticas mais relevantes dos últimos anos nos EUA, Donald Trump.

O curioso do filme é justamente como Abbasi o eleva do patamar de uma cinebiografia padrão, ainda que espertamente recortada pelo roteirista Gabriel Sherman (A Voz Mais Forte). O filme, ainda bem, tem um texto consciente de seu arco narrativo e da necessidade de emblematizar certos eventos que explicam o biografado, ao invés de só enfileirá-los em ordem cronológica - mas é na fascinação de Abbasi pelas entrelinhas arrepiantes de que existem nessa história que O Aprendiz encontra sua força real. O que no papel é “só” uma exploração contundente da ascenção de Trump pelas mãos de Roy Cohn (Jeremy Strong) se torna uma análise do que há de mais bizarro no ethos estadunidense.

Com o diretor de fotografia Kasper Tuxen (A Pior Pessoa do Mundo) e a designer de produção Aleksandra Marinkovich (Esquadrão Suicida), Abbasi trabalha primeiro para evocar um visual muito específico da era que o filme reconstrói, entre os anos 1970 e 1980. Não é só uma questão dos carros certos, roupas certas e decorações certas, mas de um filtro granulado na lente, de um aspect ratio quase acadêmico que remete ao VHS, de um uso de zoom específico para os momentos dramáticos e trocas de olhares, dos entrecortes de falsas imagens midiáticas no meio das encenações. Depois, Abbasi usa essa invocação para tentar entender como a cultura do excesso capitalista dos EUA cria e incentiva a mentalidade egocêntrica dos Trumps de sua população.

As respostas, é claro, estão tanto no texto quanto nas imagens criadas pelo cineasta e pelo seu principal “parceiro de crime”, o protagonista Sebastian Stan. O ator cumpre bem aquele clichê de “desaparecer” dentro do personagem real, imitando trejeitos que vão se consolidando durante a metragem do longa e o passar dos anos na trama, como se Trump estivesse - porque está - inventando a si mesmo em tempo real. Mas ele também faz mais do que isso, emprestando à sua versão do futuro presidente dos EUA uma inadequação latente que se traduz em carência, e depois se traduz, finalmente, em violência. Um homem que aprende (está no título, afinal) a não se importar com ninguém, a “atacar, atacar e atacar” qualquer um que tente se aproximar o bastante para entender seu deslocamento essencial no mundo.

E não é que o filme tente nos vender um Trump humanizado, de forma nenhuma. O protagonista desta nova obra de Abbasi não é menos monstro do que os dos filmes anteriores dele, mas O Aprendiz usa os recursos ao seu alcance para entender quais combustíveis empurraram esse monstro na direção da monstruosidade. O trunfo do cineasta, afinal, sempre foi fazer o espectador sentir que há algo de ainda mais podre escondido por baixo da superfície já incômoda que ele nos mostra. No seu novo filme, o que está por baixo da superfície é o excepcionalismo estadunidense, o sentimento ocidental voraz de suceder a qualquer custo.

Enfim: ao contrário de Holy Spider, O Aprendiz só cresce por ter Abbasi, este poeta em formação dos colossos mais assustadores da contemporaneidade, na cadeira de diretor - e eu jamais diria isso antes de assistir ao filme. Às vezes, é muito bom estar errado.

Nota do Crítico
Ótimo