Eu pareço um disco riscado aqui toda semana falando sobre como os filmes respondem ao capitalismo tardio, mas - e lá vamos nós - é inevitável voltar a isso no novo suspense de David Fincher. O Assassino seria só um thriller tradicional de matador de aluguel se não estivesse tão disposto a tratar, na verdade, de precarização do trabalho.
Michael Fassbender interpreta o assassino e, no papel de narrador da própria história, ele se comunica em off com o espectador com muito mais frequência do que conversa com os demais personagens do filme. Logo percebemos que o texto do assassino - em que ele nos apresenta a filosofia e os valores por trás da sua rotina sistemática - se presta menos a nos convencer e mais a convencer a si mesmo. Em O Assassino, o perfeccionismo não é uma excentricidade desprovida de contexto, e sim um sintoma de uma excitação neoliberal pela produtividade.
Sublinhar que o filme lida com questões socioculturais e econômicas é importante, aqui, para afastar a impressão inicial de que O Assassino é apenas um exercício formal, neste filme que Fincher realiza bancado pela Netflix com um gosto de passatempo. O diretor emula Jean-Pierre Melville e O Samurai (1967) desde o figurino do protagonista até a arte do pôster, e Melville era um mestre do filme policial pretensamente alienado. Estabelecer esse parentesco faz parte de uma operação de disfarçar de entretenimento barato o discurso de O Assassino.
Essa operação não envolve muito risco do ponto de vista criativo, porque Fincher aproveita o apoio da Netflix para exercitar velhos músculos; especificamente, aqueles de Clube da Luta (1999), em que Edward Norton também se mostra um narrador pouco confiável nos seus sofismas sobre consumismo, autoajuda e tudo-isso-que-está-aí. O fato de O Assassino reunir Fincher com o roteirista de Seven (1995), Andrew Kevin Walker, quase 30 anos depois, parece alinhado com esse resgate noventista, e no mais O Assassino também revisita a aproximação com a misoginia que marca os thrillers do diretor.
A questão então é saber como O Assassino e seu comentário contracultural se atualizam para os anos 2020, e se isso eleva o filme para além das suas evidências de literalidade. De um lado, há obviamente uma brincadeira aeróbica em curso, esse desafio de fazer um suspense com poucos diálogos e uma cadência quase musical, escorado na trilha onipresente de Trent Reznor e Atticus Ross. Do outro, ironicamente, as facilidades do capitalismo tardio tornam a missão de vingança do matador profissional absolutamente maçante, desde comprar na Amazon um clonador de cartões até entrar facilmente numa academia de alto padrão graças a um passe de uma semana grátis.
Esse atrito entre o desafio e o tédio é de onde o filme tira a sua força discursiva, ou pelo menos seu principal conflito interno. O tédio da operação meticulosa, formalista, é também um elemento central dos thrillers realizados por Steven Soderbergh nos últimos 15 anos, e nunca Fincher esteve tão próximo de seu contemporâneo americano quanto neste O Assassino. Toda a cena em que Fassbender passa pela Flórida no filme lembra o A Toda Prova (2011) de Soderbergh: o frenesi da porradaria e da destruição, cujo impacto se potencializa por sua gratuidade, a ação como uma coisa puramente mecanizada.
Em O Assassino, é por meio do tédio que se consuma uma percepção que acompanha o espectador desde o momento em que Fassbender aciona a maçaneta da WeWork: ser o narrador de sua própria história não o torna menos prestador de serviços num grande esquema de impessoalidade, peão do ofício terceirizado, com o agravamento de que não há adicionais de insalubridade no mundo dos matadores (ou dos PJs em geral, de qualquer forma). Obviamente esse é todo o ponto do filme, como a própria narração em off salienta nos minutos finais, mas é curioso acompanhar como Fincher e Walker tentam criar uma narrativa a partir da premissa de que tudo é dado ao protagonista - ao alcance de uma aproximação do cartão de crédito - e nada de fato se configura como obstáculo.
Esse pessimismo em relação aos nossos horizontes e toda a indiferença com que o filme trata a relação do personagem com o mundo fazem de O Assassino mais uma elaboração de Fincher em torno do tema do cinismo. No início da sua narração, Fassbender se adianta e se defende, diz que as pessoas confundem ceticismo com cinismo, mas convém lembrar que o ponto de vista do protagonista não é o mais confiável. O fato é que O Assassino fica mais cínico a cada minuto, e ao final, quando a luz do sol bate no rosto do personagem e supostamente o redime, talvez o amanhecer seja na verdade só mais um vislumbre do fim do mundo, como na explosão do final de Clube da Luta.