A fórmula parece simples: a seca nordestina como cenário, personagens sertanejos interpretados por ótimos atores, diálogos inteligentes e um clássico da literatura nacional como enredo. Sensação de déjà-vu? Pode ser. Esses são os ingredientes, tipicamente brasileiros, de O Auto da Compadecida, filme que foi "transferido" da TV para o cinema com extrema competência.
Nas mãos de Guel Arraes, a obra de Ariano Suassuna, escrita em 1955, virou mini-série e conseguiu uma das maiores audiências da TV Globo. Os quatro capítulos originais foram exibidos de terça a sexta, sempre às 22h30, e obtiveram ótimos índices de audiência, começando com 36 pontos e chegando aos 39 no último dia (mais do que havia conseguido Suave Veneno, novela que tinha acabado de estrear). No cinema, seus quatro capítulos de 40 minutos foram compactados em 1h40 de filme, mas nada se perdeu do original. Pelo contrário. Algumas cenas foram gravadas especialmente para o cinema e os cortes serviram para a trama ficar ainda mais concentrada na dupla Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Mateus Nachtergaele).
Irreverentes e trapaceiros, os dois amigos vivem em Cabeceiras, interior da Paraíba, o estereótipo das pequenas cidades nordestinas: paupérrima, pacata, seca, com um coronel e uma igreja. Para sobreviver, eles tiram proveito da "esperteza" de João Grilo, sempre com seus planos arriscados e muita lábia.
Depois de uma estrada de aventuras e de uma série de pessoas enganadas, Chicó e João Grilo acabam se encontram com Jesus Cristo, Nossa Senhora e o Diabo, num Julgamento Final pra lá de autêntico.
As ótimas atuações de Selton Mello e Mateus Nechtergaele, entretanto, não ofuscam o elenco de apoio, que também conta com excelentes atores. Irreconhecível, com próteses de ouro e olho de vidro, Marco Nanini vive um misterioso cangaceiro. Fernanda Montenegro só dá o "ar da graça" no final do filme, como Nossa Senhora, a compadecida. Lima Duarte e Maurício Gonçalves têm ótimas participações como o bispo ganancioso e Jesus Cristo (negro?!), respectivamente. Diogo Vilela, o padeiro "corno" e Denise Fraga, sua infiel mulher, também arrancam risadas do público.
Talvez o cinema no Brasil não deva insistir apenas em produções que retratem o cenário, a situação, os personagens e os dramas tipicamente nacionais, para que não criem enredos monotemáticos. Porém, esses elementos genuinamente brasileiros compõem o tipo de filme que melhor sabemos fazer, explorando a cultura popular com um pano de fundo que não podia ser melhor: a literatura nacional. É uma fórmula praticamente infalível, que diverte, lota as salas de cinema e expõe a – excelente – veia cômica de nossos atores.