Em uma cena de O Bom Gigante Amigo (The BFG, 2016), a órfã protagonista Sophie e o tal gigante que ela encontra, uma criatura que administra os sonhos e pesadelos das pessoas numa Londres de fantasia, assistem fascinados a um menino que dorme e sonha que recebe um telefonema do presidente dos Estados Unidos. Para o menino e sua família, dentro do sonho, não pode haver glória maior que essa.
Hoje atribui-se a Steven Spielberg a criação do sentimento de nostalgia dos prazeres da infância que dominou a cultura pop dos nossos tempos, mas o próprio Spielberg, em O Bom Gigante Amigo, faz aquele que talvez seja o seu filme mais estranhamente nostálgico - não uma saudade específica de uma inocência de criança mas uma nostalgia de um tempo supostamente mais descomplicado do ponto de vista ideológico, de quando o sonho maior que alguém poderia ter é ser apresentado ao presidente dos Estados Unidos, por exemplo.
Embora o livro de 1982 de Roald Dahl que inspira o filme não se passe numa época específica, Spielberg localiza a trama nos anos Reagan. O nome do presidente dos EUA é literalmente citado numa cena em que a rainha da Inglaterra procura também a outra grande potência atômica global, a Rússia (num telefonema para um tal "Boris"), para resolver um problema que exige solução firme. Estamos diante de um filme que, no seu resgate de um tempo mais "simples", reabilita o maniqueísmo que Reagan transformou em bandeira de governo, o do xerife de conflitos. Se ele é o Presidente dos EUA, afinal, teria toda a autoridade do mundo para exercer esse papel.
Dahl não era naive. Seus livros, como A Fantástica Fábrica de Chocolate, tinham um tipo de humor perverso que sabia jogar com nossos medos, e, quando foi lançado, The BFG amedrontou uma geração de crianças inglesas com sua descrição de gigantes canibais deformados. O que Spielberg faz - num filme que de resto encanta muito pela habitual destreza visual do cineasta, aqui numa empreitada de CGI bem próxima daquela de As Aventuras de Tintim - é pintar aqueles medos dos anos 80 (da guerra, da recessão, da violência) com cores mais contundentes do que um filme de criança poderia esperar.
Então temos em O Bom Gigante Amigo, por exemplo, a ideia do castigo merecido (os gigantes ficam com remorso quando expostos a um pesadelo, o que inexiste no livro) e da maldade justificada (Sophie não se arrepende, como no livro, de dar para a rainha um pesadelo tão vívido). Embora Spielberg retorne sempre em seus filmes mais pop aos mesmos temas do trauma da família desfeita (ele inventa para o BFG no filme uma subtrama de um garoto que viveu com ele anteriormente), o que temos aqui é uma novidade no seu cinema, um movimento de regressão a questões americanas dos anos 80 que o diretor raramente tocava.
"Éramos incríveis nos anos 80", diz Spielberg numa entrevista recente ao site BMD, sobre O Jogador Número 1, seu próximo longa, este sim declaradamente nostálgico em relação ao aspecto mais pop e pueril do cinema de Spielberg. Nessa entrevista, o cineasta diz que "os anos 80 eram uma ótima época para se crescer". Ele está falando de um ponto de vista de cinefilia, da produção cultural do período, ou dos anos 80 em si, com toda aquela carga que a política Reagan trazia consigo? O Bom Gigante Amigo é um filme que problematiza isso, embora talvez não perceba.
Nota do Crítico
Bom