Cena de O Conde (Reprodução)

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Crítica

Mais amargo do que ácido, O Conde equaliza vampirismo e autoritarismo

Pablo Larraín está mais preocupado em expurgar demônios do que em fazer sátira

22.02.2024, às 13H25.

Há um quê de afronta no texto de Guillermo Calderón e Pablo Larraín para O Conde - não na forma como coloca o ex-ditador chileno Augusto Pinochet (Jaime Vadell) como um vampiro bicentenário doido para morrer, exatamente, mas na forma como faz cada um dos membros de sua família confessar seus crimes sem nenhum embaraço para a contadora Carmencita (Paula Luchsinger), contratada para avaliar o patrimônio dos Pinochet antes da morte do patriarca. Acreditando estar diante de uma das muitas apoiadoras do regime autoritário, que persistiram na paisagem política chilena muito após a deposição do general, os herdeiros detalham em diálogos expositivos as dúzias de contas em paraísos fiscais do pai, os subornos recebidos e as falcatruas realizadas com empresas públicas, confiando plenamente na perpetuação do reino de impunidade em que viveram por décadas.

E O Conde sabe muito bem que eles não estão errados nessa confiança. Embora Carmencita seja secretamente uma freira, enviada pela Igreja Católica para compilar um relatório dos crimes dos Pinochet como material de chantagem, o filme a mostra eventualmente seduzida pelo chamado de poder que emana do ex-ditador, indo pra cama com ele e se tornando, também, uma vampira. É a forma raivosamente irônica que Larraín e Calderón encontram para condenar o papel de liderança que os ditos democratas cristãos tiveram na redemocratização do Chile, quando bloquearam múltiplas tentativas de condenação judicial contra a família Pinochet em nome de uma aparência de consenso que, na prática, deixou impunes os crimes cometidos pela ditadura e permitiu que o apoio a ela seguisse forte no país.

Por isso até que, embora tenha sido definido (até pela própria Netflix, na sinopse do filme disponível na plataforma) como sátira, O Conde pouco usa do humor e da acidez como forma de diminuir ou apontar o absurdo das pessoas e situações sobre as quais comenta. O que emerge da literalidade dos diálogos dos Pinochet com Carmencita, ao invés disso, é um thriller amargo movido principalmente por uma visão cristalina do vampirismo sistêmico que define as instituições corruptas da contemporaneidade. Larraín mostra, através de seu general-ditador que viveu para muito além do seu tempo e daqueles que o apoiam, que a perversidade do poder autoritário atravessa eras e sobrevive - ainda que decrépito, isolado em algum casarão caindo aos pedaços - ao surgimento e derrubada de regimes políticos.

Esteticamente, enquanto isso, O Conde se encontra em outra dissonância: embora a trama o aproxime do horror, o trabalho de Larraín e do diretor de fotografia Edward Lachman (indicado ao Oscar 2024 pelo trabalho) empresta muito mais do cinema mudo do que de exemplares do gênero. Optando por um preto-e-branco de baixo contraste, Lachman faz maravilhas com a direção de arte mordaz de Rodrigo Bazaes (Notícia de um Sequestro) e com a performance maravilhosamente física do protagonista Jaime Vadell, que sugerem a megalomania decadente e empoeirada de Cecil B. DeMille e D.W. Griffith, mas também o foco quase aerodinâmico das encenações de Buster Keaton. E não é nenhuma coincidência que, com seu cabelo curtinho e feições beatificas, Paula Luchsinger lembre tanto o semblante sofrido de Maria Falconetti no clássico mudo O Martírio de Joana D’Arc (1928).

É curioso pensar em O Conde, por fim, dentro do contínuo da carreira de Larraín. Conhecido no Chile por dramas sociais que vasculham os porões da história recente violenta do país, o cineasta foi para Hollywood com duas cinebiografias que - não por acaso - retratam os corredores do poder como cenários de sufocamento militar. Jackie e Spencer (com o qual, inclusive, O Conde divide uma escalação especialmente significativa) apropriam vícios de linguagem do documentário e do cinema de guerra para retratar mulheres que se veem incomodamente inseridas na narrativa imparável do poder, pedras enfiadas no meio de engrenagens que nunca cessam de girar.

Em O Conde, Larraín segue assombrado por esse nexo inescapável, embora se veja muito mais focado nos monstros eternos que só querem perpetuá-lo, batendo no liquidificador os corações desavisados dos meros mortais.

Nota do Crítico
Ótimo