Depois de assistir ao amigo Matt Damon criar para si (depois desistir, depois retornar) uma franquia de suspense e ação, os filmes de Jason Bourne, Ben Affleck esboça fazer o mesmo. O Contador (The Accountant, 2016) estabelece as premissas de um mundo bastante intrincado de personagens e relações que podem se desdobrar em mais de um filme, com o mesmo perfil de thriller de paranoia e perseguição dos cinco Bourne.
Que essas premissas sejam absolutamente ridículas, um pastiche de lugares-comuns de gêneros diferentes, e mesmo assim o diretor Gavin O'Connor passe duas horas dedicando-se a desenrolá-las e entrelaçá-las, aos poucos se torna o grande charme de O Contador. É como uma piada ruim que ganha graça pela repetição, o que depende em boa medida de um interlocutor com um mínimo de paciência e, depois, de comiseração.
O roteiro de Bill Dubuque pode ser descrito como um cruzamento de Bourne com Uma Mente Brilhante. Ou de Amor sem Escalas (Anna Kendrick, eterna estagiária) com O Exterminador do Futuro. Imagine um filme estrelado por um Lionel Messi - aqueles gênios com Síndrome de Asperger que se especializam numa tarefa e a executam à perfeição, não por escolha mas porque assim determina esse tipo específico de autismo - ajustado para a fórmula do longa de assassino em último serviço. O Contador parte dessa estrutura e vai compulsivamente juntando outras, como um acumulador de lixo doméstico.
Affleck vive o tal contador, que usa no filme o nome Christian Wolff. Graças a uma educação rígida do pai militar, Christian aprendeu a se defender no mundo, embora seus talentos de socialização sejam precários. Ele faz apuração contábil para alguns dos nomes mais gordos que estão na mira da Receita americana, incluindo tipos perigosos com negócios escusos. O filme começa com uma cena de flashback - que se repetirá duas outras vezes - e depois aprendemos que Christian é tão bom no que faz que também se tornou procurado pela lei.
Não é só a repetição do flashback inicial (e de outros vários que vão e voltam no tempo ostensivamente para nos dar o painel mais amplo e completo de quem são Christian e os personagens que o orbitam) que demarca essa obsessão de O'Connor por fazer de O Contador um filme bem fundamentado. Não há, no grande elenco coadjuvante, muitos tipos criados para exercer papéis meramente funcionais; alguns deles inclusive ganham, ao longo do filme, status insuspeitos de coprotagonistas, como J.K. Simmons e Jon Bernthal. Tudo para tornar a história de Christian Wolff mais convincente.
Ainda assim, como O Contador é involuntariamente cômico! Das escolhas mais cafonas de caracterização (a coleção de arte, os tiques nervosos) à atuação absurda de Affleck (existe uma razão para um amigo ter virado o Batman e o outro ter sido o Gênio Indomável), o resultado encanta pela persistência de tentar e errar consistentemente. Fica muito evidente que existe uma proposta de franquia por trás de O Contador, e no fim das contas ninguém dá ponto sem nó em Hollywood, mas não custa nada imaginar que por trás de toda a ideia errada de realizar este filme havia também um pouco de inocência.