Difícil expressar hoje, 30 anos depois, o momento cultural que foi o surgimento de Brandon Lee caracterizado como O Corvo na tela grande. Metido em um body suit apertadíssimo de látex preto, profundas sombras pretas nos olhos e um batom igualmente preto na boca, com as pontas puxadas tal qual um Coringa de araque, a transformação do músico torturado Eric Draven no espírito vingador de sua amada Shelly (Sophia Shinas) galvanizou e, de certa forma, definiu um movimento geracional que, alguns anos antes e depois, ficou conhecido como emocore. Música, estética, filosofia, colocação de mundo… estava tudo lá, encapsulado nos ângulos oblíquos com os quais Alex Proyas filmou sua cidade gótica desorganizada. Se tivemos Gerard Way, a culpa foi dele.
Daí que é natural a vontade desta nova versão de O Corvo de representar o mesmo ponto de ignição para a cultura jovem de sua própria época. Natural e declarada: o diretor Rupert Sanders ao menos foi honesto quanto às suas inspirações para o visual do protagonista, agora interpretado por Bill Skarsgård, dizendo à Vanity Fair que artistas como Post Malone e Lil Peep ditaram as tatuagens faciais, o moicano improvisado e o aspecto meio anêmico - mas ainda musculoso, para atender à fantasia de poder do público - do personagem, assim como o estilo decadente que dita o design de produção do filme. “Espero que meninos de 19 anos olhem para ele e digam: ‘Este cara é a gente’”, definiu.
A emulação desta estética, que tem base no movimento emo rap, nascido em meados de 2010 para atualizar e refrescar o emocore e o pop punk, é inegavelmente bem sucedida. Sanders, afinal, já provou em Branca de Neve e o Caçador (2012) e A Vigilante do Amanhã - Ghost in the Shell (2017) que tem um olho certeiro para criar produtos hollywoodianos polidos e persuasivos de um ponto de vista visual. E, apesar de toda a pose de alternativo, da ostensiva autenticidade de seu retrato de um modo de vida às margens da sociedade, não se engane: O Corvo trafega no mesmíssimo território de superfícies envernizadas, iluminação urbana colorida e composições cenográficas de impacto imediato que definiram os títulos anteriores do cineasta.
Essa artificialidade, em si, não é problema - o problema é, na verdade, que o filme reluta em abraçá-la. Falta teatralidade a O Corvo, talvez por medo de alienar uma geração de frequentadores de cinema que se acostumaram ao “realismo fantástico” de outras grandes produções. Por causa dessa hesitação, o filme de Sanders trilha o caminho trágico desenhado pelo roteiro de Zach Baylin (Creed III) e William Josef Schneider (Return to Silent Hill) meio que mancando, sem se entregar a nenhuma das emoções primordiais do texto. O Corvo ensaia ser um romance condenado shakespeariano entre dois desajustados, ensaia ser o filme de quadrinhos violento e operático que os fãs estão esperando há anos… e repetidamente faz escolhas que garantem que tudo não passe de um ensaio.
Para um filme tão ansioso por representar os impulsos estéticos e dramáticos de uma geração, enfim, O Corvo escolhe o meio termo frequentemente demais. Assim, quando o Draven de Skarsgård rastreia os assassinos de sua Shelly (FKA Twigs) para um luxuoso anfiteatro durante uma apresentação de ópera, brandindo somente uma espada de samurai para enfrentar as armas de fogo dos muitos seguranças de seus algozes, o diretor Sanders tenta nos convencer de seu pedigree melodramático ao entrecortar a cena de ação sangrenta com o espetáculo que está rolando no palco - mas a ação em si é encenada de forma protocolar. Ao contrário de John Wick e seus discípulos, O Corvo não embarca na ideia da boa porradaria cinematográfica como teatro.
No fim das contas, é esse o equívoco elemental que descarrilha o filme, por todas as possíveis virtudes que ele poderia encarnar. Há algo de interessante no texto, por exemplo, sobre a transferência de responsabilidade que é fundamental para a perpetuação do abuso dentro de um relacionamento, a culpabilização bastante definitiva que ajuda a domar a consciência do abusado diante das deturpações e violências geradas por uma relação tóxica. Na pele do vilão que, dotado de uma voz persuasiva demoníaca, convence as pessoas a realizarem o seu trabalho sujo, Danny Huston brilha com a gaiatice malévola de sempre e apresenta um subtexto oportuno para atualizar a história original e comunicar uma mensagem de absolvição ao público jovem fragilizado que costuma se apegar a esse tipo de narrativa.
Mas não adianta: boas intenções ou não, O Corvo é um filme sem energia, sem expressividade, sem a presença de espírito que é necessária para pegar o discurso pop no qual está inserido pelo pescoço e mostrar a ele um novo ponto de inspiração. O filme da Sanders, ao invés de puxar a fila, está sempre perseguindo algo - e não há nada menos cool do que alguém que vive se desdobrando para agradar.