Está na moda debater moralmente a popularidade do true crime, na busca de algum consenso que equilibre o sensacionalismo e a violência dessas narrativas com o fascínio do público por seus mistérios. Se os super-heróis redesenharam os filmes de grande orçamento nos últimos 20 anos, não é exatamente absurdo imaginar que essas minisséries documentais policiais já imprimem efeito similar a longo prazo nos hábitos do espectador de streaming.
Para além da questão moral, é interessante notar os efeitos discretos que já são sentidos na ficção sob influência desse novo gosto. Na seara do documentário, o true crime opera próximo do sensacionalismo, e essa relação tende a tomar o subjetivo como objetivo para reforçar o factual das teses e investigações. Replicar essa estrutura na ficção é um desafio à parte.
O mais novo fruto dessa cadeia de reações é O Enfermeiro da Noite, adaptação do livro de mesmo nome que reconta nas telas a história de Charles Cullen. Serial killer condenado à prisão perpétua em meados dos anos 2000, o tal enfermeiro do título permanece um mistério até os dias de hoje: além de não haver um motivo aparente para os crimes, sua metodologia de adulterar medicamentos com doses fatais de insulina e digoxina impossibilita uma contagem de corpos, enquanto sua passagem por diferentes hospitais revela outro padrão de má administração de saúde nos EUA.
Se esses elementos tornam Cullen um personagem interessante, o filme dirigido pelo dinamarquês Tobias Lindholm prefere o caminho do enigma indecifrável. Embora o assassino seja o centro das atenções, a narrativa faz uma escolha deliberada pelo distanciamento de sua figura ao adotar a perspectiva de Amy Loughren, enfermeira que ajudou a polícia a capturá-lo. Essa posição também reduz drasticamente o espaço para interpretações, e o longa se mantém fiel ao procedural ao alternar entre a protagonista vivida por Jessica Chastain e a dupla de policiais responsável pelo caso.
Nota-se aí o interesse pelo documentário através da ficção, numa abordagem que lembra muito o aplicado pela série A Escada com o material de Morte na Escadaria há alguns meses. Embora o referencial aqui seja um livro e não uma minissérie documental, O Enfermeiro da Noite almeja a “realidade dos fatos”, o que passa por escolhas visuais como a estética acinzentada dos corredores e quartos do hospital. A produção não se expande sobre as relações ou personagens que apresenta, como se espera tradicionalmente em adaptações do tipo e da dramaturgia em geral, mas entende essas situações como um fim em si mesmas - como no true crime, o prazer é mais sobre a descoberta da verdade que a implicação dos mesmos. Ajuda aí também a duração “curta” em relação ao seriado tradicional, ainda que se trate de um longa-metragem de duas horas.
Nesse ponto a dinâmica lembra muito o da reconstituição televisiva numa versão “prestígio”, completa com atores premiados com o Oscar nos papéis principais e a presença na direção de Lindholm, um colaborador frequente do cineasta Thomas Vinterberg. A diferença, claro, é o fetiche ocasional que transparece na atuação de Eddie Redmayne, cuja caricatura de Cullen soa como epítome dos interesses do filme: sua performance passeia do afeminado ao explosivo nas batidas esperadas do trabalho de corpo por deformação do artista, e a câmera o isola como peixe num aquário até onde é possível para reforçar não só a “grande transformação”, mas a posição de testemunha de acusação do público. Se entender o humano soa como uma tarefa impossível, o diretor se prende ao exotismo através do ator.
Além de roteirizar Druk e A Caça para Vintgerberg, Lindholm ficou conhecido nos últimos anos por Guerra, longa dinamarquês que chegou a ser indicado ao Oscar de Filme Internacional e que trabalhava na estrutura de causa e consequência pela colisão de dois registros, o filme de guerra e o de tribunal. Não é difícil reparar aqui na repetição desse raciocínio de choque para tentar depreender algum tipo de arco narrativo na personagem de Amy, que chegou a ser amiga íntima do assassino antes de descobrir seus crimes, mas essa tensão se dissipa rápido demais para implicar em algo. Tampouco se percebe a visão do sistema no processo, até porque a posição de Cullen é de novo a do mal isolado, confortável na categorização de serial killer.
O que fica, então, é o aborrecimento do presente, despido de qualquer interesse a momentos que redefinam o olhar do espectador no curso das cenas. Conforme O Enfermeiro da Noite se prende ao factual, qualquer interpretação se reduz ao insignificante, e a ficção aos poucos é despida de vida para virar uma espécie de grande matéria informacional.