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Filmes

Crítica

Woody Allen esboça despedida ensolarada mas melancólica em O Festival do Amor

Comédia se enche de cinefilia e autorreferências em tom de elegia

05.01.2022, às 20H35.
Atualizada em 19.09.2022, ÀS 09H31

Diretor de fotografia dos últimos quatro filmes de Woody Allen, o italiano Vittorio Storaro é conhecido pelo uso barroco da luz. Os close-ups dos filmes que ele fotografa frequentemente são banhados de uma luz entre o amarelo e o laranja, virada direto para os rostos de atrizes e atores, como se nesse momento os personagens estivessem em contato com o divino, ou a ponto de serem arrebatados.

Em O Festival do Amor, essa iluminação se justifica dentro do filme, antes de mais nada, porque estamos na ensolarada San Sebastian, capital gastronômica do País Basco, onde ocorre o mais famoso festival espanhol de cinema e onde a trama se passa. Mort Rifkin (Wallace Shawn) é um crítico de cinema novaiorquino que a contragosto acompanha sua bela esposa Sue (Gina Gershon) no festival, e lá desconfia que ela o trai com um jovem cineasta francês em ascensão (Louis Garrel).

Ao invés de um filme como Roda Gigante (2017), que usa as cores de Storaro para aterrar a penosa experiência de vida da personagem de Kate Winslet, em O Festival do Amor o banho de luz que atinge os encontros fortuitos dos personagens (especialmente os momentos entre Rifkin e a médica espanhola por quem ele se apaixona) só lhes ressalta a fugacidade da vida. Em outras palavras, o efeito é oposto; aqui, a luz de epifania do italiano entra para celebrar a leveza dos instantes, eternos enquanto durarem.

O que temos então é um cineasta em estado de graça, que achou sua paz pessoal com os demônios que lhe atribuem? Não a julgar pelo contexto em que O Festival do Amor foi feito. Cancelado ao redor do mundo, Allen provavelmente escolheu o festival de San Sebastian como cenário porque foi o único lugar que o acolheu. Seu filme tem um tom de despedida que fica muito bem marcado na metalinguagem, em passagens anedóticas de cinefilia em que Rifkin sonha com trechos reencenados de filmes que marcaram a juventude de Allen, de Fellini a Bergman. Na era das autorreferências, Allen inclusive parodia a si próprio: a piada do dermatologista que surge por acaso para resolver uma questão de picadas evoca a cena de Marshall McLuhan em Annie Hall (1977).

Então talvez não seja o caso de um arrebatamento, como Storaro sugere, mas especificamente de uma elegia - nas duas hipóteses, de qualquer forma, o filme se reveste de um caráter melancólico e testamental de ordem divina. Em última análise, isso pode se estender aos outros três longas que Storaro fotografou para Allen, um cineasta em busca de paz pelo caminho que ele conhece e no qual confia: o da luz artificial dos sets de filmagem, espaço intimista de redenção pela crença na mentira. 

Embora seus filmes impliquem sempre uma carga de humor e uma de melancolia, com o Woody Allen tardio não tem muito meio termo: ou as histórias se prestam ao descompromissado, ou então ao plenamente trágico. O fato de não saber dosar as duas coisas talvez explique o insucesso de filmes que tentam transitar entre os dois, como Melinda e Melinda (2004). Já pelo trailer é possível antever que O Festival do Amor opta pela chave do descompromisso, disfarçado de leveza, porque a própria prévia já antecipa um spoiler e responde ao dilema do adultério que atormenta Rifkin.

O que temos então é um filme feito com uma mistura amarga de melancolia, despojamento e também de autocomiseração - não aquela clássica tendência da comédia judaica de rir de si, mas um apelo à piedade mesmo. Crente na redenção na luz e em velhas fórmulas (a paixão pela jovem, a certeza da superioridade intelectual), Allen parece se isolar da mesma forma que Mort Rifkin escolhe ignorar o que acontece ao seu redor no festival, e o longa não tem a energia que um Hong Sang-soo, por exemplo, injeta em histórias muitíssimo similares, sobre o mundinho do cinema e suas dinâmicas de narcisismo e autodesprezo. Foi preciso vir um cineasta sul-coreano para substituir o humor judaico de Allen nesse sentido.

A tendência é que O Festival do Amor permaneça, dentro da obra de Allen, por seu valor de ponto de chegada. Nunca antes o cineasta havia escolhido um ator tão velho para interpretar seu alter-ego mais jovem; o comediante Wallace Shawn tem 78 anos, e Allen, 86. Os oito anos que os separam só é comparável na obra do cineasta aos 12 anos de diferença de Allen para Larry David, que estrelou em Tudo Pode Dar Certo uma comédia, aí sim, toda focada no absurdo das diferenças de idade. Escolher Shawn para lhe personificar numa atuação que troca os arroubos expansivos de neurose por uma discreta hipocondria também denota uma certa exaustão.

É curioso tomar como comparação o que Clint Eastwood fez em Cry Macho em 2021, porque parece inevitável que esses ícones do cinema americano, em plena atividade como octogenário e nonagenário, respectivamente, assumam em seus novos filmes a realidade da idade. Se Eastwood celebra a si mesmo em Cry Macho, porém, como totem inabalável de uma certa visão de mundo, Woody Allen torce por uma consagração que lhe é estranha e extrínseca. Ela está na luz redentora de Storaro, está na eterna validação da amante jovem, e está nas citações a outros cineastas, membros do cânone que quiçá devolverão a Allen seu prestígio por empréstimo. 

Se O Festival do Amor for mesmo uma despedida, isso vai se dar sob o signo do tormento. Não seria nenhuma novidade na obra do maior cineasta da tradição judaica americana - o mais interessante aqui é que o filme tente nos convencer justamente do contrário.

Nota do Crítico
Regular