Às vezes, surgem alguns filmes que retratam tão bem a época em que vivemos, que se tornam um marco. No futuro, se tornarão uma espécie de portal ou porta-voz do tempo, um de volta para o passado que mostrará como as pessoas pensavam em tal época, e também os perigos de certos pensamentos datados que, claro, sempre voltam, mesmo que revisitados. Infelizmente, raras são as vezes que o grande público acredita que filmes capazes de tais feitos sejam filmes de terror. Não por conta da qualidade do gênero, que é ótima e tem ficado cada vez mais densa, mas talvez por muita gente ainda ter um pequeno receio em acessar o grotesco para pensar no pior de si e da sociedade em que vive.
O filme Medusa é uma distopia (será?) que imagina um Brasil em que o Estado laico não é mais válido. Junto com isso, traz a história de Mariana (Mari Oliveira) e de outras “Preciosas do Altar”, mulheres recatadas que, por conta da religião, caçam outras mulheres, desde que estas sejam sem preconceitos e sexualmente livres, as espancam e filmam a agressão até que elas aceitem Jesus. Dizem que tudo teria começado com Melissa (Bruna Linzmeyer). “A mulher mais devassa que o mundo já viu”, Melissa teria sido a primeira a passar por um dos “corretivos” de uma das “Preciosas” e, depois disso, teria tido o paradeiro desconhecido. Ainda assim, as meninas, claro, são fascinadas para saber o que realmente teria acontecido com ela.
Depois de alisar os cabelos quando aceitas pela religião (uma referência à Medusa com os cabelos de cobra e os cabelos das meninas que se moldam e ficam cada vez mais cacheados à medida que elas se tornam cada vez mais elas mesmas), elas começam numa busca do que julgam ser bom, de uma perfeição, devoção ao pastor, submissão a Deus e, claro, aos homens do grupo Vigilantes de Sião, militares com correspondentes a elas na versão masculina e que algumas das meninas namoram. Mas, ironicamente, o que faz Mariana ir atrás de uma versão diferente de si é uma violência que ela passa ao tentar bater em uma vítima, e que a impede de trabalhar com estética, como fazia anteriormente.
Medusa, o filme, não é óbvio nem mesmo na referência que faz ao mito. A mulher que transforma homens em pedra com o olhar dá lugar a outros pontos importantes da figura mitológica: vaidade, a rivalidade que Atena tinha por Medusa, por conta de sua beleza, e o abuso sofrido por Medusa, estuprada por Poseidon, mas julgada como culpada por isso.
Com um humor sarcástico como o trecho que ensina “10 maneiras de tirar uma selfie para a glória de Deus”, o filme também é perturbador. A diretora usa muito as cores, principalmente o verde (mais uma referência à Medusa), para trazer transtorno e desconforto ao espectador. Anita Rocha da Silveira é uma esteta e me lembrou do pintor Edward Hopper nos seus planos de câmera, muitas vezes usando o cenário como personagem.
Outros destaques ficam por conta do ralo, que consome o verde de máscaras de beleza, o vermelho do sangue e as cores de maquiagem que escondem olhos roxos, mas que também difundem uma música sobre amor numa noite estranha na Casa de Cuidados onde Mariana trabalha com pacientes em coma. Inclusive, o coma acredito ser uma representação de como a sociedade está: viva, porém desacordada.
Destaque para Joana Medeiros em sua atuação, que carrega a melhor frase do filme: “aqui quase ninguém acorda, quase ninguém realmente morre”. Muito provavelmente a fala que também representa o enredo do filme em sua totalidade. A verdade, no final das contas, é que, se Melissa virou um monstro, não foi por quem ela foi, mas pelo que a sociedade fez dela.
O demônio não é quem peca, mas o desejo reprimido de quem não consegue viver quem é. Medusa é um filme de horror real e atmosfera grotesca, em que o maior monstro é quem acredita que faz o bem. A arrogância e prepotência como temas de uma realidade universal e boa a todos.
A verdade é que o ser humano só consegue se reprimir até certo ponto e a verdade escorre por onde menos se espera, geralmente através da obsessão pelo próprio ódio, assim como as meninas, sempre obcecadas por encontrar Melissa.
Anita Rocha da Silveira disse que o filme tem como tema central a questão do controle do outro, mas também acredito que Medusa seja um filme sobre adorar a coisa errada, colocar muita energia onde não se deve. As adorações tortas são muito perigosas e, muitas vezes, donas de um caminho sem volta.
A pergunta que ecoou para mim durante o filme todo foi: Quem essas meninas seriam se elas fossem livres? Sem a prisão que utiliza o nome de Deus, mas é outra coisa completamente diferente? Quem elas seriam sem usar da liturgia para esconder seus próprios desejos, sem usar do coletivo para calar o singular?
O filme ganhou diversos prêmios em vários festivais pelo mundo, foi aclamado em Cannes e eleito pelo Collider como uma das melhores produções de terror do ano.
De qualquer forma, não vá pensando que vai assistir a um filme de terror pesado. Não é. O horror está na atmosfera e na proximidade assustadora com a realidade, mas não nos alimenta de sustos, pavores sobrenaturais e gore. Ele usa muito, sim, do grotesco e da estranheza, o que pode ser ainda mais genial e provocativo dentro do horror. Aliás, preste atenção na primeira cena do filme, em que Bruna Linzmeyer se debate em uma dança como se fosse um inseto tentando sobreviver ao inseticida. Uma das melhores cenas que já vi em um filme nacional de horror.
A diretora e roteirista, Anita Rocha da Silveira, está de parabéns pelo seu segundo longa. A nota que vou dar para o filme não é apenas pela qualidade dele, que é, sim, excelente, mas porque acredito que seja um filme necessário. Todos deveriam assistir e quem sabe, assim, consigam se salvar antes do fim. Amém.