Não que estejamos recomendando isso a ninguém, que fique claro - mas, caso fique de olho no relógio durante sua sessão de O Mal Não Existe,o espectador vai perceber que o filme de Ryûsuke Hamaguchi opera uma virada narrativa a cada 30 minutos de projeção, com uma precisão quase matemática que contradiz inteiramente a aura de autor de dramas “sentidos” construída em torno do cineasta de Drive My Car. O que emerge de seu primeiro longa depois do sucesso no Oscar, ao contrário disso, é um autor que usa o cinema para projetar discursos e visões construídas na manipulação disciplinada do tempo, que se aproveita da aliança do espectador com o personagem centralizado pela câmera para expô-lo na proporção certa para que o entendamos como parte da engrenagem maior onde ele se situa.
Na primeira meia hora de O Mal Não Existe, este personagem é Takumi (Hitoshi Omika), o pai viúvo da pequena Hana (Ryo Nishikawa), que virou uma espécie de “faz-tudo” na comunidade japonesa rural onde vive. Hamaguchi acompanha sua rotina em longas tomadasdesenhadas para realçar os cenários bucólicos onde ele trabalha - mas, quando deixa que nos aproximemos do homem, faz também que entendamos a tribulação alienante que pauta suas idas e vindas pela aldeia, realizando tantos “bicos” e pensando em tantas tarefas ao mesmo tempo que é fácil se esquecer disso (uma reunião com uma empresa que quer instalar um acampamento glamuroso no local) ou daquilo (o horário de buscar Hana na creche) pelo caminho.
É só na segunda meia hora de filme que Hamaguchi se dá ao trabalho de introduzir o conflito, trazido justamente pelos dois funcionários (Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani) da empresa que quer instalar o tal acampamento, que logo percebem que os moradores locais terão muitas queixas quanto ao projeto. O cineasta constrói esse conflito, e depois - na terceira meia hora - revela o ponto de vista dos proverbiais antagonistas, através de cenas prazerosamente longas de diálogo que, apesar de sua duração, não descendem para a verborragia teatral. No roteiro de Hamaguchi e Eiko Ishibashi (também compositor da trilha de cordas sinistras do filme, uma dobradinha de funções que não vemos com frequência no cinema), as pessoas falam nos tons familiares da realidade, em meio-significados reveladores, tateando diante do que querem ou podem revelar ou expressar uns para os outros.
E O Mal Não Existe, acima de tudo, adora observar os castelos de cartas que são erigidos por esses diálogos, essas relações alarmantemente reais. Esse é talvez o traço essencial que o longa divide com os filmes anteriores de Hamaguchi, inclusive o mais famoso deles: o prazer de ver como humanos colidem uns com os outros e se escondem uns dos outros através de palavras e atos tipicamente encenados em um ambiente fechado, quase claustrofóbico, que aqui é contrastado com a floresta esparsa onde o protagonista passa a maior parte do seu tempo realizando ações essencialmente solitárias - e, ainda assim, onde ele sente uma conexão comunitária que inexiste nas salinhas apertadas e carros com ar-condicionado da vida urbana.
Hamaguchi, um artista metropolitano por natureza, se vê transfixado por essa contradição aparente na vida de Takumi e daqueles que o cercam, uma contradição que ele até admira, mas não realmente compreende. Os antagonistas do filme ele conhece bem, em toda a perversidade dos sistemas em que eles estão inseridos, e com o qual contribuem de maneiras alternadamente empolgadas ou desafetadas. Hamaguchi não os culpa por viverem no mundo que vivem, e fazerem o que este mundo exige deles - mas a existência de uma alternativa a essa vida, e o fato de que eles estão tentando construir por cima dessa alternativa, os coloca em uma posição moralmente comprometida do qual não conseguem sair, até porque não conseguem inteiramente entender.
É justamente na mística dessa incompreensão que O Mal não Existe se apoia quando faz a sua última virada, se transformando em suspense ecológico de subtons místicos, marcados pelo crepúsculo enevoado no qual Hamaguchi e o diretor de fotografia Yoshio Kitagawa (O Desejo de Minha Alma) ambientam os arroubos finais de brutalidade de uma história que, até então, costurou habilidosamente ao redor da violência. É uma conclusão bastante repentina, pautada no inexplicável e em chavões do terror ambientado em floresta (pense A Bruxa de Blair, ou talvez A Cor que Caiu do Espaço) - e que também carrega as marcas de um contador de histórias que se viu encurralado pela irresolução das questões e conflitos que levantou na história contada até ali.
Mas há valor na candura brusca com a qual Hamaguchi encerra essa fábula enganosamente sombria sobre os males impessoais que assombram a contemporaneidade, este filme que questiona por que insistimos em nos machucar com as balas perdidas da caça que todos empreendemos para colocar a janta na mesa. Ele não tem a resposta, mas está observando, e (seja qual for o valor disso) quer que observemos também.