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Desde a morte do genial Stanley Kubrick o manto do último cineasta reflexivo-filosófico americano caiu nas costas do texano Terrence Malick, de 62 anos. Com apenas três filmes numa carreira de mais de 30 anos, o diretor recluso se dedicou a transformar a convencional narrativa cinematográfica num pensamento único de abstração expressionista. Seu trabalho mais recente é O novo mundo (The new world, 2005), baseado na história da índia Pocahontas, trama que já nos foi apresentada como desenho animado pela Disney. Mas quem espera encontrar mais um filme de amor, com musiquinhas típicas das animações e repleto de aventura, não ficará até o final da sessão. A produção é calcada por um ritmo lento e visualmente impressionista, que irá hipnotizar os amantes do cinema concebido como arte com uma autêntica tapeçaria de imagens carregadas de sons e cores. Uma verdadeira visão poética de uma fábula. A história conta a saga do capitão John Smith e Pocahontas: lendária relação inter-racial amorosa entre os dois durante a fundação da cidade de Jamestown, em 1607, que mais tarde irá se tornar a base para a fundação do estado da Virginia. Malick dividiu a trama em três atos. Temos a chegada de Smith naquela terra virgem e imaculada, capturada de forma brilhante pelo diretor de fotografia Emmanuel Lubezki através da difícil tarefa de trabalhar com luz natural (quase todo rodado em 65 milímetros). O encontro de Smith com Pocahontas, filha preferida de Powhatan, o chefe da tribo, acaba levando a uma relação que provocará a expulsão da princesa. O segundo ato se inicia quando ela está refugiada no forte inglês, no momento em que entra em contato com a cultura dos ingleses. O terceiro e último ato acontece com a sua ida para a Inglaterra ao convite da coroa britânica. Durante todo esse processo os personagens irão sofrer batismos e aprenderão os costumes de uma nova cultura. Um novo mundo não só para Smith, como também para a pequena índia. Tanto que a sua audiência com o rei é filmada de forma barroca, com um entusiasmo assustador, da mesma forma que o encontro de Smith com Powhatan. Interessante notar que a princesa nunca é chamada de Pocahontas durante toda a projeção, como também os indígenas são denominados de naturais, confirmando as intenções antropológicas da película. Todas essas transformações são pontuadas na trilha sonora pelo prelúdio de Das Rheingold de Wagner, que vem num crescendo arrebatador, até que a música some e barulhos da floresta, marulhos e cânticos de pássaros tomam de assalto a narrativa. A edição acompanha esses arroubos sonoros. Calmamente, ela se torna nervosa e termina abruptamente num fundo preto e silencioso. É extremamente sofisticado. Em certos momentos, quase sem diálogo, os personagens são obrigados a dividir seus pensamentos mais íntimos com o espectador. Pode até incomodar, mas o recurso era necessário para manter os menos adeptos a reflexão à narrativa da história. Malick é obrigado até a dar uma consciência mais inglesa para Pocahontas nessa busca da compreensão do grande público, que precisa dos sustentáculos factuais. Mas quem prestar mais atenção poderá perceber, que através dos enquadramentos de seus gestos e feições, o comportamento de Pocahontas condiz com a sua natureza. E é justamente esse natural que permeia o filme em toda a sua duração. Ninguém consegue filmar a relação natureza/ser vivo como Malick. Um contato não só emocional, como físico. A natureza está em constante envolvimento com os personagens, ajudando-os a se relacionar. Até a implicação amorosa de Smith e Pocahontas foge do convencional. É um misto de surpresa e curiosidade. Eles dançam em pequenos rituais como estivessem em uma outra realidade, aprendendo e ensinando suas respectivas culturas e linguagens. Um sentimento não moderno e sim instintivo. Desse choque de culturas aprendemos que os ingleses foram salvos pelos naturais em seu primeiro inverno. Eles ensinaram a plantar milho e a importância de estocar. Duas culturas se mesclando e contribuindo, mas com uma engolindo a outra ao final por causa da força e, a extrema necessidade de se buscar ordem e controle. Nesse ponto o filme ganha um tom de documentário étnico. Um tempo em que as pessoas estavam em sintonia com os ritmos da Terra, antes da constatação do paraíso perdido. As interpretações são dignas do conteúdo proposto por seus realizadores. Colin Farrell nos brinda com uma performance inteligente, sustentada pela credibilidade e não por caras e bocas. Christian Bale reforça ainda mais seu talento no papel de John Rolfe. Mas o destaque vai mesmo para estreante QOrianka Kilcher na pele de Pocahontas. Ela só tinha 15 anos nas filmagens, e sua interpretação parece de uma veterana. Seu personagem é justamente a ponte de ligação entre dois povos. Tamanha responsabilidade foi encarada com extrema sutileza e comoção. Mas vale lembrar que no universo de Malick, os humanos não são os personagens que determinam seu destino. Eles são meros elementos em cena, indefesos e à mercê da Mãe Natureza, objetos utilizados para provar as questões levantadas: a tragédia do mal-entendido, a intolerância, o suspense da descoberta e o choque do novo. Assuntos amplamente discutidos desde os primórdios, mas que auferem novidade quando vistos pelas lentes de Malick.