Antes de mais nada, O Pianista (The Pianist, 2002), o mais recente trabalho de Roman Polanski, merece respeito por um detalhe crucial. Numa indústria em que o termo "engajado" normalmente recebe cunho pejorativo, o filme faz parte de uma classe em extinção: a do cinema feito por paixão, vocação e, acima de tudo, uma necessidade quase fisiológica de se expressar. Mas existe um problema aparente: trata-se de mais uma, entre as dezenas de obras a respeito do Holocausto.
O Pianista
O Pianista
O Pianista
O Pianista
A trama baseia-se na autobiografia de Wladyslaw Szpilman (1911-2000), um dos 400 mil judeus que viviam em Varsóvia e que foram sumariamente massacrados quando a Alemanha invadiu a Polônia, em 1939. Szpilman, aclamado instrumentista da Rádio Nacional, assistiu ao confinamento de sua família e dos seus pares poloneses no chamado "Gueto" da cidade, sofreu diante das normas racistas impostas pelo exército nazista, escapou do conseqüente extermínio e sobreviveu como um moribundo nos escombros da cidade até o final da II Guerra Mundial, em 1945.
Enfim, nada que já não tenha sido mostrado, por exemplo, no especial para a TV Insurreição (Uprising, 2001 - disponível nas locadoras), com competência e elenco de astros. O que faz do filme, então, uma obra-prima merecedora da Palma de Ouro em Cannes, do BATFA, do César, do Goya de Melhor Filme Europeu - e de sete indicações ao Oscar (Filme, Diretor, Ator, Fotografia, Figurino, Roteiro Adaptado e Montagem)? Três coisas pesam a favor de uma avaliação. Ou melhor, três nomes: Polanski, Szpilman e seu intérprete, o ator nova-iorquino Adrien Brody.
Primeiramente, a trajetória real do pianista se confunde com a do cineasta. Responsável por (pelo menos) três clássicos obrigatórios, O bebê de Rosemary (Rosemarys Baby, 1968), Chinatown (1974) e O Inquilino (Le Locataire, 1976), Polanski nasceu em Paris mas, descendente de poloneses, mudou-se com os pais para Varsóvia aos dois anos de idade, em 1935. Ali, no meio da guerra, assistiu à morte da mãe e da irmã - e ficaria com as imagens do extremismo marcadas na memória.
Polanski não se considerava suficientemente imparcial para dedicar um filme ao episódio. Foi o que disse a Steven Spielberg quando recebeu a oferta de dirigir A lista de Schindler. Em todo caso, visualizou no drama real de Szpilman uma maneira sincera de recontar a tragédia. Queria manter uma mensagem: a de que os judeus poloneses se destacaram pela luta no "Gueto", apesar da idéia dominante de um massacre sem resistência. No fim das contas, muitas das passagens vistas no filme fizeram parte da vida de Polanski. A cena em que o pai de Szpilman recebe a ordem de um oficial nazista para andar na sarjeta, ao invés da calçada, e acaba surrado, aconteceu com o pai do diretor.
E quando ouviu da crítica que seu filme seria "acadêmico demais", o diretor tomou o comentário como um elogio - e completou: "Fricotes e movimentos vertiginosos de câmera seriam obscenos; um filme como este deve ser narrado com sobriedade e ética". A explicação resume os méritos de Polanski atrás das lentes. Aliado à dedicação, o equilíbrio permeia toda a produção, justamente numa temática em que qualquer deslize pode levar a caricaturas ou clichês.
Já a vida singular de Szpilman serve como um diferencial poético. Sem tino para a luta armada, o personagem figura ora como observador dos acontecimentos, ora como um fantasma que resvala de esconderijo em esconderijo. Do contraste entre o seu delicado talento artístico e a brutalidade da guerra, surgem as passagem mais emocionantes. Dentre elas, a mais bela e emblemática é aquela em que Szpilman, mantido isolado em um apartamento deserto, apenas simula tocar um piano, uma vez que qualquer barulho acabará com a sua "camuflagem".
E, por fim, a interpretação de Brody engrandece a película. À parte a transformação física, a barba, as olheiras e os quatorze quilos perdidos para a preparação do papel, o ator transmite com um simples olhar todo o sentimento de solidão do personagem. Cabe a ele boa parte da tarefa de provar, ao espectador, que o filme não é apenas um dentre muitos sobre o tema. Aliás, raramente a expressão "bom de doer" é usada com propriedade. Neste caso, vale dizer. O Pianista é um filme que dói.