Assim como Os Donos da Noite, que parte de fotos reais em preto e branco para situar, dentro desse recorte da realidade nos anos 1980, a sua narrativa de ficção, O Som ao Redor também começa com uma seleção de imagens p&b. No caso do filme do Kleber Mendonça Filho, porém, são fotografias mais antigas, de fazendas dos tempos dos senhores de escravos.
o som ao redor
o som ao redor
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Não é apenas uma contextualização, portanto, que o diretor pernambucano está procurando estabelecer neste seu primeiro longa-metragem de ficção, mas uma relação histórica. Os latifúndios nunca saíram de moda no Brasil, afinal, e O Som ao Redor tenta mostrar que, no século 21, a exploração do trabalho e a obsessão com a posse só ganham novas expressões.
A trama se ambienta na vizinhança onde Mendonça mora no Recife, em meio aos edifícios altos de Boa Viagem. São três ou quatro ruas que a família do senhor Francisco (W.J. Solha) domina. Quando chega por lá, porém, uma equipe de vigilância propondo aos vizinhos um serviço de segurança 24 horas (que todos contratam na hora), a influência e o poder de Francisco se enfraquecem. Com os vigias alertas, enfim, todos podem ter seu próprio latifúndio em paz.
A chegada dos vigias é o pretexto para Mendonça fazer em O Som ao Redor um panorama da convivência problemática que temos hoje com os espaços públicos e privados nas grandes cidades, situação de hostilidade que passa pelas relações domésticas de trabalho. O mal estar que zumbe ao longo do filme, presente na trilha do DJ Dolores e na edição de som que ressalta os barulhos do dia a dia (motores de elevadores, cães, música alta), é semelhante ao mal estar de Trabalhar Cansa, que escolhe lidar com a classe média e com as relações de trabalho em chave surrealista.
Já a chave de O Som ao Redor é hiperrealista. Além dos efeitos de som, que trazem para dentro de casa todos os barulhos da rua que grades na janela não conseguem conter, os close-ups dos câmeras Pedro Sotero e Fabricio Tadeu são bastante arrojados, e alguns zoom-ins são tão longos que chegam a deformar a imagem (como no plano noturno do vigia recém-chegado). Embora utilize a janela mais horizontalizada do Cinemascope para achatar o teto e ampliar os espaços laterais dos apartamentos, é nesses close-ups que a claustrofobia de O Som ao Redor se dá de forma mais angustiante.
Filmar uma "coisa normal com um tratamento não tão normal" é uma explicação prosaica que Mendonça dá para falar do seu longa. Embora cite como influência o cinema opressivo de John Carpenter (para o brasileiro, Carpenter é sempre "uma presença"), talvez O Som ao Redor tenha mais em comum com outro cineasta que Mendonça, enquanto crítico de cinema, costuma elogiar em seus textos: o palestino Elia Suleiman. A ideia de encenar a rotina como uma panela de pressão (metáfora que Suleiman inclusive usa literalmente) e associar, por sugestão, o mal estar do dia a dia com um contexto histórico (no caso do palestino, o conflito com Israel) é aproveitada aqui por Mendonça com máximo efeito. A cena da bola de futebol que cai no vizinho em O Som ao Redor parece saída direto de Intervenção Divina de Suleiman.
A estrutura de roteiro do palestino, em forma de vinhetas, que à primeira vista não têm relação umas com as outras, mas formam um painel crescente de pequenos desconfortos, rendem em O Som ao Redor momentos de percepção fina (as estrelas coladas no teto do quarto que sumiram debaixo de uma mão de tinta), de fantasmagoria (o aspirador de pó que a mulher usa para fumar cigarro parece que lhe suga a alma) e de puro terror carpentiano (a luz do sensor do alarme domiciliar é o símbolo perfeito do estado de emergência em que vivemos).
Como bom crítico, Kléber Mendonça Filho sabe colher as melhores influências para seu trabalho, e depois de quatro curtas premiados em festivais, ele agora pode, a partir da consagração internacional de O Som ao Redor, fazer do seu estilo uma assinatura própria.
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