Em Matadouro 5, clássico da ficção científica de Kurt Vonnegut, o protagonista Billy Pilgrim, constantemente viajando entre passado, presente e futuro, pendura na parede de seu escritório uma oração que melhor define seu lema de vida: “Deus, me conceda serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar; coragem para mudar as coisas que posso; e sabedoria sempre para reconhecer a diferença entre elas”. O Som do Silêncio é definitivamente mais pé no chão que a obra de Vonnegut, mas demonstra perfeitamente a árdua jornada em busca da sabedoria para distinguir o que está sob nosso controle, e o que pede por serenidade.
O filme de estreia do diretor e roteirista Darius Marder narra a virada repentina na vida de Ruben (Riz Ahmed) quando o baterista de heavy metalperde a audição. Incapacitado para exercer sua função na turnê ao lado da namorada Lou (Olivia Cooke), ele encontra um custoso tratamento médico, mas precisa aprender a lidar com sua nova realidade, enquanto junta dinheiro para a despesas. Pelo gênero musical tocado por Ruben e Lou, e por um intenso show logo na abertura, é possível prever agitação e brutalidade, mas o filme subverte qualquer expectativa inicial ao pedir aos protagonistas, e ao espectador, um pouco de paciência.
A essência de se adaptar a uma nova realidade imposta de surpresa funciona em qualquer período da história, mas a construção de O Som do Silêncio é feita sob medida para a experiência das gerações Y e Z. O casal mora em um trailer, que viaja pelos Estados Unidos numa turnê por bares escuros, com refeições em restaurantes de beira de estrada, tentando juntar o máximo de grana possível com performances e venda de camisetas e álbuns. A impotência que Ruben sente quando sua condição médica avança é a de toda uma geração: sem empregos fixos, moradia ou dinheiro, ser “traído” pelo próprio corpo é o limite final que, quando cruzado, ainda traz uma gigantesca conta médica.
Traição é o que melhor descreve o que o personagem sente diante do próprio estado de saúde, o que desperta uma frustração capaz de fazê-lo machucar a si próprio e também àqueles que ama. Ter a surdez como catalisadora dessa derrocada é território delicado. Felizmente, o que o filme argumenta é que a vida não acaba por aí, muito pelo contrário. Quando Ruben é levado a uma comunidade de pessoas com deficiência auditiva, o mentor Joe (Paul Raci) - um veterano que perdeu a audição em uma emboscada na Guerra do Vietnã - deixa claro que o lugar não trará respostas para sua questão médica, mas sim para sua saúde mental.
O longa apresenta uma forte visão anti-capacitista, dando holofotes para uma parcela da população que, na ausência de melhor representação, sofre com estereótipos e preconceitos. O elenco tem grande força nisso, escalado a partir de pessoas com as deficiências que interpretam nas telas. Além de Lauren Ridloff, atriz surda que foi destaque das temporadas recentes de The Walking Dead e que integra Os Eternos, quem rouba a cena é Paul Raci. Como Joe, ele é claramente carinhoso, mesmo diante do desprezo de Ruben, mas também firme e orgulhoso do trabalho que faz, com tanta presença de tela que demanda a atenção do espectador sempre que dá as caras. É por meio dele que fica clara a importância do autoconhecimento, humildade e comunidade em momentos de crise.
Talvez pelo perfeccionismo da direção de Marder, que notoriamente atrasou em anos a realização do filme até que tudo estivesse certo, todas as atuações beiram o assustador de tão intensas e naturais. E é surpreendente como Riz Ahmed tira de letra um personagem complexo como Ruben. O papel é exigente em muitos níveis, não só por ter feito o astro passar mais de um ano aprendendo a tocar bateria e se comunicar na língua de sinais. Ahmed canaliza com maestria alguém cuja mente está nebulosa pelo desespero, pelos traumas de um passado de abuso de drogas, e que desconta isso em todos ao seu redor com explosões de raiva e angústia.
Seja nos berros ou nos momentos de contemplação, é visível que se trata de uma pessoa moldada pela dor, sem nada mais a perder, mas com uma insistência em continuar lutando. Isso tudo torna compreensíveis ao espectador suas várias decisões impulsivas e questionáveis, ainda que não menos trágicas. Se a indústria ainda não reparou o verdadeiro potencial de Riz Ahmed, esse filme é um ponto de virada.
Após um ano coletivamente traumático como 2020, é de vital importância ver um novo interesse por obras capazes de discutir de forma simples a necessidade de união e reflexão, como fez a Pixar com Soul. No caso de O Som do Silêncio, o resultado é um pouco menos otimista, mas igualmente existencialista. Entre a construção narrativa altamente relevante para as gerações atuais, a direção de fotografia intimista ou o impactante design de som, o filme demonstra com os erros de seus protagonistas que o grande desafio dos dias de hoje é ter a cabeça forte para as eventuais derrotas. E que mesmo quando a vida consegue te abater, há sempre a oportunidade de se levantar, com a ajuda dos outros, e tentar novamente - mesmo que isso apenas leve a novos erros. No fim das contas, o que importa é conhecer a si próprio, por mais frustrante que seja, e saborear os pequenos momentos de calma antes do caos.