20th Century Studios/Divulgação

Filmes

Crítica

O Último Duelo tem boas ideias, mas pouco cuidado na abordagem de traumas

Ridley Scott mostra competência ao contar versões diferentes da mesma história, mas peca no tratamento de assuntos que pedem delicadeza

14.10.2021, às 20H09.

[Aviso de GATILHO: o texto a seguir, assim como O Último Duelo, menciona assuntos delicados que podem causar desgaste emocional e psicológico]

Embora discussões de pautas políticas e sociais tenham ganhado mais e mais espaço graças às redes sociais, são poucos os exemplos encontrados na indústria do entretenimento que reflitam esse crescimento com honestidade. Com frequência, grandes estúdios centram suas histórias em homens brancos e de meia-idade, mesmo quando eles não possuem o lugar de fala. O Último Duelo, novo filme medieval de Ridley Scott, manifesta de forma gritante esse padrão, usando a visão de dois homens para contar a história real de uma mulher francesa do século XIV que buscou justiça após ser estuprada. Mesmo acompanhado de uma montagem competente e criativa, o desconforto causado pelo deslocamento da narrativa é impossível de ser ignorado.

O longa é inspirado na história real de Marguerite de Carrouges, vivida aqui por Jodie Comer, nobre francesa que desafiou os costumes medievais ao denunciar o homem que a violentou, Jacque Le Cris (Adam Driver), e o julgamento que se sucedeu ao crime. Em uma tentativa de remontar o caso a partir de três diferentes perspectivas, O Último Duelo se perde em uma repetição agoniante, mais preocupada em estabelecer a rivalidade entre Le Cris e Jean de Carrouges (Matt Damon) do que a luta por justiça de Marguerite em uma época em que a Igreja ditava cada lei de uma nação.

Os primeiros dois atos do longa trazem uma construção problemática de seu trio principal. Mesmo repassando a mesma história três vezes e de três perspectivas diferentes, o roteiro de Damon, Ben Affleck (dupla oscarizada por Gênio Indomável) e Nicole Holofcener (Gente de Bem) não aprofunda seus protagonistas, cujas histórias são reduzidas a diálogos expositivos esporádicos. Esse retrato superficial fica especialmente evidente no desenvolvimento de Marguerite que, apesar de ter a história repassada três vezes em duas horas, termina O Último Duelo reduzida ao seu status de esposa de um nobre. Ao contrário de Le Cris e de Carrouges, que pelo menos comentam seus feitos passados em momentos isolados, a personagem não tem qualquer detalhe de sua história antes de conhecer o marido revelado, como se ela simplesmente não existisse antes de sua noite de núpcias. Num exemplo clássico de fridging, Marguerite tem seu sofrimento usado pelo roteiro como mera motivação para os atos dos homens ao seu redor, sem que qualquer característica evidente além da bondade e a beleza esperadas de uma donzela em perigo.

Outro grande problema de O Último Duelo é a atuação nada inspirada do elenco principal. Matt Damon e Adam Driver, por exemplo, interpretam cada diálogo com uma pompa novelesca, competindo pela câmera como dois irmãos brigando pela atenção dos pais. A pior interpretação, no entanto, fica por conta de Ben Affleck. O ator parece regredir à pior fase de sua carreira, e entrega um trabalho digno dos infames Demolidor: O Homem Sem Medo e Contato de Risco.

O que impede o filme de ser irredimível é a excelência trazida por Jodie Comer. Mesmo presa a uma personagem rasa, a atriz de Killing Eve eleva o pouco material que lhe é dado pelo roteiro com uma atuação forte e emocionante, que traduz as seguidas agressões físicas e psicológicas sofridas por Marguerite ao longo dos anos.

Scott também faz o possível para evitar que os 150 minutos de O Último Duelo entediem o público. O cineasta monta cada uma das perspectivas de uma maneira diferente, em uma construção que reforça o depoimento de Marguerite e dá peso ao combate-título entre Jean e Le Cris. As cenas de ação do longa trazem a intensidade característica apresentada pelo diretor em filmes como A Lenda, Gladiador e Cruzada.

Com um roteiro melhor trabalhado do que o apresentado por Damon, Affleck e Holofcener, talvez o filme apresentasse algo além de brutalidade. Infelizmente, o trio deixa todo o trabalho pesado para Comer e Scott que, sozinhos, pouco conseguem fazer para que O Último Duelo se tornasse algo além de mais um blockbuster medieval esquecível.

Nota do Crítico
Regular