Oh, Canada nunca tenta a mesma coisa duas vezes. Em sua ânsia de traduzir em cinema uma história guiada pela memória à deriva de um homem em suas últimas horas de vida, o diretor Paul Schrader lança mão de um leque até impressionante de recursos visuais e truques retóricos: em um momento, Richard Gere e Jacob Elordi estão revezando o papel do protagonista Leonard dentro de uma mesma cena, quebrando a expectativa linear da narrativa biográfica em flashback; em outro, vemos Gere observando na janela - em cores - uma cena de sua própria juventude, onde Elordi - em preto e branco - transa com uma de suas amantes; Uma Thurman, que interpreta a esposa de Leonard, Emma, também aparece como uma segunda figura feminina da trama; a câmera que filma o protagonista na velhice, dando o seu depoimento biográfico para um documentário, registra também o rosto de seu entrevistador/confessor, posição em que o ex-aluno Malcolm (Michael Imperioli) e a própria Emma se revezam.
São, de verdade, incontáveis as ideias que Schrader aperta dentro de uma embalagem cinematográfica de pouco mais de 90 minutos. E absolutamente nenhuma dessas ideias é recorrente ou empregada de forma metódica, que fique claro - falando só do aspecto visual, o uso das cores e do P&B por parte do diretor de fotografia Andrew Wonder (New Orleans, Mon Amour) é impulsivo na definição mais caridosa, e Oh, Canada tampouco tenta estabelecer alguma lógica para a sua oscilação entre diferentes formatos de tela (na linguagem cinéfila, aspect ratios). Nesse sentido estético, é um filme repleto de faíscas, de momentos de encenação cinematicamente excitantes, especialmente quando incluídos dentro de um cinema espartano por natureza como o de Schrader, mas indisposto a construir uma linguagem.
Ou talvez seja melhor dizer que Oh, Canada só está interessado mesmo é na linguagem da fragmentação. O que Schrader parece ter intuído, a partir do livro de Russell Banks (um dos últimos que o autor lançou antes da morte, em 2023), é que esta é uma história sobre como dificilmente podemos realmente conhecer um homem. A tragédia de Leonard, de suas covardias, suas mentiras e suas fugas de responsabilidade, é que ele tenha se rachado em mil pedacinhos, o que torna impossível para ele se revelar até diante das pessoas que ama - por vergonha, por teimosia, por imaturidade emocional mesmo na terceira idade. E a irascibilidade negadora e defensiva da qual ele não consegue fugir, mesmo enquanto tenta finalmente espremer a tal confissão de si mesmo, diante da câmera que lhe mostra a esposa, é a parte mais dura dessa tragédia.
Enfim: Schrader, que é de uma geração de cineastas impulsionados por uma energia profundamente autoral, e impelidos principalmente aos homens complicados e calados dos quais aprenderam a masculinidade, monta aqui mais um de seus filmes-confissão. Entre seus contemporâneos, ele tem o mérito de ser o artista que se aproxima com menos rodeios de um mea culpa, de uma admissão da qualidade patética de seus mecanismos de defesa e ataque. Como todo cineasta, no entanto, ele é melhor quando consegue ligar as suas neuroses e obsessões a um filme que se comunica não só com o diálogo interno de si mesmo, mas com a subjetividade do público.
E Oh, Canada até busca construir um universo cinematográfico em que isso é possível, desesperadamente procurando por ferramentas de mediação entre o sujeito da narrativa e o espectador. Mas o filme fica nisso mesmo: na busca. Inquieto e indeciso no pior dos sentidos, ainda deixa seus atores à deriva diante da multiplicidade de missões que pede deles, algumas executadas com brilhantismo, e outras nem tanto. Gere é ótimo imitando os trejeitos de Elordi, por exemplo, mas Imperioli e Thurman são notas falsas óbvias na composição do longa, com performances que parecem agudamente conscientes da precariedade dos recursos ao seu redor - o que só se torna mais gritante quando eles precisam interpretar versões mais jovens de si mesmos.
Às vezes, dizer que um filme é desajeitado não é uma grande ofensa. Antes um filme que tente agarrar o mundo e falhe do que um filme que não tenta lá muita coisa desde o início, certo? Mas, normalmente, esses bons filmes desajeitados se conectam a uma energia mais rebelde, subversiva - o próprio Megalopolis, também exibido em Cannes e dirigido por um contemporâneo de Schrader, Francis Ford Coppola, é um bom exemplo. É fácil perdoá-los por serem inadequados quando sua inadequação é a um sistema que sufoca a criatividade, que impede histórias de serem contadas. Oh, Canada, por outro lado, é inadequado de uma forma que leva a uma erosão da sua própria narrativa, de seu próprio protagonista, até de seu próprio autor. E ver um artista se desintegrando na tela nunca é muito agradável.