Michael Showalter está vivendo um grande momento. Antes lembrado “apenas” como o Coop da franquia de comédia mais improvável dos anos 2000, Wet Hot American Summer, Showalter se reposicionou cuidadosamente dentro da indústria nos últimos anos, principalmente com seus projetos na direção. Doris - Redescobrindo o Amor (2015) e Doentes de Amor (2017) o colocaram no mapa como o homem a se chamar quando você quer uma comédia romântica madura e eficiente sem deixar de ser comercial, mas a virada de 2021 para 2022 trouxe dois títulos que o revelaram como algo ainda mais improvável: um observador importante do modo de vida americano.
O mais recente desses títulos é a série The Dropout, atualmente em curso no Brasil pelo Star+, mas antes disso tivemos Os Olhos de Tammy Faye. Cinebiografia da televangelista Tammy Faye Bakker (Jessica Chastain, que levou o Oscar de melhor atriz pela performance), o longa a acompanha desde as revelações religiosas da infância até o ressurgimento de sua popularidade como cantora, nos anos 90, passando principalmente pelo casamento conturbado com Jim Bakker (Andrew Garfield). O casal fundou a emissora religiosa PTL, mas o império midiático desmoronou em 1987 diante de acusações de fraude financeira e abuso sexual contra Jim.
Assim como o documentário no qual se baseia, lançado em 2000, esta nova versão de Os Olhos de Tammy Faye enxerga a sua figura central com óbvio carinho. Há bons motivos para isso: como televangelista e personalidade midiática, Tammy se opôs aos seus colegas de ramo por defender uma liturgia de amor e aceitação que incluía, por exemplo, pessoas LGBTQIA+, movimentos feministas e dependentes químicos. No auge da crise da AIDS, ela recebeu um pastor gay e HIV-positivo em seu programa e declarou sua tristeza com a forma como outros cristãos se mostravam “incapazes de abraçar essas pessoas e mostrar que se importam com elas” - cena recriada de forma tocante no filme de Showalter.
Esse carinho e consideração pelo histórico de ativismo de Tammy transborda na nostalgia detalhista da reconstrução de época do filme. A designer de produção Laura Fox remonta os estúdios da PTL com olho afiado para o exagero artificial dos anos 70 e 80, mas também para a forma como a sensibilidade evangélica da era pintava esse exagero em cores pastéis; e o figurino de Mitchell Travers veste Chastain em plumas brancas e roupões de cetim, enquanto Garfield é colocado em ternos sempre um pouco grandes demais para ele.
Até nesses aspectos técnicos, no entanto, a dualidade retórica do filme fica clara. Por exemplo: é também o design de produção que é responsável por montar as mansões absurdas dos Bakker, que desnudam o seu evangelho da prosperidade como uma fachada muito mal disfarçada para a ambição de enriquecimento próprio. O roteiro de Abe Sylvia (Nurse Jackie, Disque Amiga Para Matar) é incisivo em como entende essa ambição desregulada e inconsequente como resultado de um sistema que a encoraja, e não da falha pessoal de seus protagonistas. É claro que Tammy e Jim queriam enriquecer - eles viveram em um mundo que dizia a eles, o tempo todo, que dinheiro é a única métrica de valor humano que importa.
Sem abandonar suas raízes na comédia, Showalter se mostra o observador perfeito para essa desumanidade sistêmica. Ao invés de recorrer à hiperestilização, ele dirige Os Olhos de Tammy Faye como a dramédia de costumes com algo a dizer que ela é, eventualmente fazendo desvios em direção a uma sátira mais franca (o take final do filme é um exemplo perfeito), mas frequentemente escondendo as risadas por baixo de momentos de honestidade emocional, e vice-versa. É difícil encontrar um artista nessa nossa era de absolutos que se mostre tão confortável com a ambivalência da obra que está conduzindo.
É também por entender essa tensão inerente ao filme que Chastain brilha tanto. Esqueça aquela ladainha sobre como ela “encontrou a mulher real por baixo da maquiagem bizarra”, porque Tammy, como ela mesma deixa claro em um diálogo do longa, era sua maquiagem bizarra. Abraçando a verdade essencial dessa caricatura, Chastain encontra uma forma potente de expressar o que era realmente fascinante e especial sobre Tammy: a maneira como ela era capaz de se transformar integralmente, irrestritamente, na imagem aspiracional que queria vender para o seu público.
Ela se fazia melhor do que era pela pura força de vontade, mesmo que fosse em parte para aliviar a culpa de uma filosofia de vida essencialmente egocêntrica. Os Olhos de Tammy Faye se recusa a simplificar essa mulher e seu legado pelo bem no maniqueísmo usual das cinebiografias hollywoodianas, e é muito melhor por isso.