Você alguma vez já viu o Sol bater no rosto de uma pessoa que você ama, iluminando os cantos menos explorados daquela face, clareando os olhos que se cerram diante da luz, e pensou sobre como é absolutamente divina a beleza daquele ser? Você já romantizou um artista torturado, ficou olhando para a foto naquela orelha de livro (ou, quem sabe, no Google imagens), para aqueles olhos abatidos, aquelas olheiras pronunciadas, aquele cigarro pendendo dos lábios entreabertos, e pensando nas coisas sublimes e tristes e terríveis que passam por aquela cabeça? Você já dançou uma música lenta no fim de uma noitada inacreditável, o último copo de bebida na mão, a emoção daquelas notas e daqueles vocais gritados batendo como nunca bateu antes, os seus companheiros de jornada noturna se transformando em figuras quase míticas e sua afeição por eles se transformando em poesia? Uma garota bonita já te olhou e acenou inesperadamente, te fazendo corar?
Eu poderia continuar essa brincadeira por linhas e linhas, parágrafos e parágrafos, porque Paolo Sorrentino talvez não tenha vivido tudo isso - mas tudo isso está em Parthenope, seu novo filme, que estreou em competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024. O maximalismo tipicamente italiano, cujas referências óbvias são Fellini e Bertolucci, já assombrava as obras anteriores do cineasta (Juventude, A Grande Beleza, A Mão de Deus), mas é aqui que Sorrentino o leva às últimas consequências, ao seu potencial mais puro. Cada uma das imagens de Parthenope chega à tela em admiração inadulterada, escapando como que por algum milagre do contínuo desgaste da cultura pop do qual elas são retiradas. Embora tudo aqui, é claro, seja uma reedição (porque tudo é), nada aqui parece velho, porque Sorrentino despe cada uma das camadas de cinismo referencial dessas evocações estéticas e as reapresenta como fins por si só.
Parthenope é um filme belo no qual a beleza é todo o ponto, todo o manancial do significado que ele almeja e consegue encontrar. Ao lado de colaboradores recorrentes como a diretora de fotografia Daria D’Antonio, o designer de produção Carmine Guarino e o figurinista Carlo Poggioli, Sorrentino cria um mundo que comporta sensualidade e sabedoria, a vulgaridade da riqueza e da pobreza, a ambiguidade dos carinhos e toques fraternos, o debasamento do sexo e sua sacralidade, a banalidade do tempo e seu domínio absoluto sobre o humano. E, nesse mundo gloriosamente aberto a todas as contradições, ele insere uma narrativa que se revela profundamente pessoal sobre as transformações de uma cidade, as imagens que ela evocou e evoca, a fuga e retorno a ela, sua incapacidade de se afastar da lama inglória da miséria.
A personagem título do filme, interpretada pela modelo Celeste Dalla Porta, nasce em uma família riquíssima de Nápoles, e é batizada em homenagem à sereia da mitologia greco-romana que se tornou uma espécie de padroeira da cidade italiana. Em certa dimensão, portanto, Parthenope é Nápoles, e Sorrentino está interessado em desenhar sua trajetória em paralelo ao crescimento e às convulsões da cidade entre os anos 1950 e 1980. Mas esse desenho é na verdade mais um esboço, uma alusão - Sorrentino não é Elena Ferrante (até onde a gente sabe), e seu filme não se pretende um estudo social profundo de amadurecimento diante de um mundo que obriga o corpo feminino a se posicionar de maneira política dentro dele. Mas Parthenope tem consciência desse mundo, e sabe usá-lo como apoio para suas próprias obsessões narrativas.
É justamente por ter essa consciência que o filme encontra peso narrativo insuspeito para além de sua conjuração prodigiosa de imagens pura e verdadeiramente belas (o que seria mais do que o bastante para fazer um belo cinema, diga-se de passagem). Testemunho disso é quanta carne a protagonista Dalla Porta encontra no osso de sua Parthenope, que poderia muito bem ser só uma vedete simbólica da juventude calorosa pela qual Sorrentino é tão fascinado. É uma atuação que conquista tanto por se divertir com a superficialidade da reação das pessoas a ela quanto por desvelar a inquietude de quem busca algo mais, a curiosidade insaciável que une Deus e o homem na perplexidade diante do que há de incompreensível um no outro.
Parthenope (a personagem e o filme) quer vislumbrar, tocar esse incompreensível nem que seja por só um segundo, e nem que seja ao adentrar no território do profano, do exploratório, do desejo puro que depende da mediação da cultura, mas recusa a mediação do pudor e da moral. Parthenope abraça o mundo e escolhe poetizar até sua feiúra, para compreender e aguentar a dor que se escorre por ele como um líquido viscoso que se choca contra um corpo sólido - impermanente, por vezes repugnante, mas também inevitável. Se Parthenope é uma fantasia, uma romantização de uma realidade difícil, ele é o melhor tipo de fantasia: aquela em que o irreal, o idealizado, nos ajudam a fugir de e a compreender, ainda que só fugazmente, o verdadeiro.
Parthenope é como todos nós, e como ninguém que já viveu. Parthenope é arte pura.