Olivia Colman e Jessie Buckley em Pequenas Cartas Obscenas (Reprodução)

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Crítica

Enérgico e direto, Pequenas Cartas Obscenas conta história feminina silenciada

Filme britânico tem roteiro sólido e dá espaço para coadjuvantes roubarem a cena

13.09.2024, às 14H39.

Pequenas Cartas Obscenas é uma lufada de ar fresco dentro de uma das salas mais abafadas do cinema: o filme de época britânico inspirado em história real. Todos os anos, uma mão cheia destas produções chega aos cinemas e ao streaming, resgatando alguma trama inspiradora ou excêntrica dos livros de história e trazendo-a para as telas com os mesmos enquadramentos padronizados, a mesma fotografia apagada, o mesmo tom confortável de glorificação do passado, a mesma reiteração de platitudes para que o público se sinta bem por concordar com elas. Alguns destes filmes encontram algo de incômodo para dizer, e outros se salvam nas performances do elenco, mas todos padecem de uma abordagem pressão-baixa que não convence inteiramente como cinema.

Entram em cena a cineasta Thea Sharrock (Como eu Era Antes de Você) e o roteirista Jonny Sweet (veterano de séries de comédia no Reino Unido, como Chickens e Together), que enchem Pequenas Cartas Obscenas de uma energia cênica e uma integridade narrativa que inexiste em seus companheiros de subgênero. Sweet é especialmente culpado neste caso, uma vez que cai sobre os ombros do seu texto a responsabilidade de transformar essa história sobre um punhado de cartinhas cheias de profanidades recebidas por membros respeitáveis da sociedade em uma cidadezinha britânica no pós-Segunda Guerra em algo de substância dramática, que justifique os risinhos fáceis arrancados dos palavrões metralhados na velocidade da luz por estrelas como Olivia Colman e Jessie Buckley.

A solução que ele encontra para este dilema em específico é dar profundidade ao mundo onde se passa sua história com coadjuvantes bem definidos, que têm espaço para desenhar seus próprios arcos e se fazerem entender pelo público. Exemplo primário: Gladys Moss (Anjana Vasan), a policial que se vê atraída para o caso das cartas e se torna virtualmente a única esperança da desbocada Rose (Buckley), acusada pela vizinha carola Edith (Colman) de ser a autora das missivas. O filme não estica muito o mistério, de forma que precisa confiar que nos importemos com o destino dessas pessoas mesmo quando já sabemos quem está “certo” ou “errado” na história - é nos dilemas da policial Moss, ricamente expressados por Vasan em performance de precisão cômica e dramática, que acha uma forma de nos dizer que as coisas não são tão simples quanto parecem.

Enquanto Pequenas Cartas Obscenas vai se posicionando assim, como uma história sobre a ressaca da liberação feminina no século XX, sobre as muitas prisões que se construíram ao redor da ideia de liberdade almejada e conquistada por essas mulheres, sobre o silêncio imposto a elas no cotidiano e nos livros de história, pode parecer que o trabalho da diretora Sharrock é só manter a mão leve por trás das câmeras. Isso ela faz bem, criando um filme que conhece os seus ritmos cômicos e se delicia em observar o seu elenco expressando o que existe por baixo deles, seja no olhar transbordando em ressentimento de Colman, mais dada a caretas do que nunca, ou na linguagem corporal prodigiosamente liberada de Buckley, que repete aqui muito do trabalho que já tinha feito no subestimado drama indie As Loucuras de Rose (2018).

Sharrock também encontra, no entanto, o ensejo para criar uma linguagem visual expressiva em torno dessa história. Com o diretor de fotografia Ben Davis - cujo trabalho eclético o transformou em favorito do Marvel Studios, mas também do autor-diretor Martin McDonagh (Os Banshees de Inisherin) - ela aposta em ângulos fechados para tentar arrastar o mundo internalizado dessas mulheres reprimidas para a luz, e libera o seu lado melodramático (com assistência providencial da trilha de Isobel Waller-Bridge) na hora de encenar os extremos aos quais elas são empurradas para escapar desse silêncio sufocante.

De certa forma, o trunfo de Pequenas Cartas Obscenas é o quanto acredita na ficção como instrumento de fuga - e na fuga como primeiro passo para construir uma realidade mais justa do lado de fora da prisão de onde se quer escapar. No fim das contas, os insultos mal desenhados nas correspondências que estão no centro do filme, mais do que qualquer coisa, servem para revelar as rachaduras e fortitudes das relações dessas mulheres. É através dessas relações, por sua vez, que o filme encontra a energia para se provar uma obra muito mais vital do que pode inicialmente parecer.

Nota do Crítico
Excelente!