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Crítica

Pig é mais que Nicolas Cage em vingança: é uma obra-prima sobre a vida

Convenções do cinema de ação são instrumentalizadas por drama existencialista potente

13.01.2022, às 15H05.
Atualizada em 14.01.2022, ÀS 18H27

Nas pinturas de Caravaggio, o contraste duro entre luz e sombra — o celebrado chiaroscuro — era a principal de uma série de contraposições pensadas para associar o sagrado ao humano, como o duelo entre belo e feio proposto pela representação romântica da violência. Com isso, o pintor reforçava a aproximação do texto religioso à realidade secular por meio de uma das sensações mais naturais possíveis — a dor — e nela unificava as divisões estéticas e temáticas para apresentar o etéreo e o terreno em unidade, ambos elementos formativos da experiência humana.

Mas, se Caravaggio foi o mestre expoente dessa técnica, Rembrandt é o pupilo que o superou. Enxergando a unidade que vinha das claras divisões propostas pelo italiano, o holandês as suavizou para imbuí-las de um caráter subjetivo e espiritual: seu chiaroscuro, mais suave e enevoado, não só envolve como penetra as figuras pintadas, ressaltando a relação conflituosa da humanidade com seus dogmas. Trata-se da mesma discussão temática trazida por seu predecessor, mas reduzida a uma perspectiva intimista.

Em Pig - A Vingança, o chiaroscuro fluido de Rembrandt retrocede à rigidez de Caravaggio à medida que o reencontro com as flagrantes divisões que estruturam a sociedade capitalista moderna faz o protagonista aceitar e superar uma incômoda trepidação interna. Fruto de escolhas movidas justamente pela dor, esse sentimento só se torna irrelevante a partir da compreensão de que não representa um erro de percurso, mas sim sua natureza humana. O trabalho envolvente de fotografia assinado por Patrick Scola (Monstros e Homens) pontua como esse filme, sobre um homem em busca de seu porco de estimação roubado, é uma obra densa que versa sobre arte e comercialismo da mesma forma que os grandes mestres da pintura abordavam o sagrado e o secular.

Esse homem é Rob (Nicolas Cage), um velho ermitão que vive em uma floresta de eucaliptos graças à caça e comercialização de valiosas trufas negras — fungos adorados pela alta-cozinha para o preparo dos mais diversos pratos de luxo. Para encontrá-las, ele semanalmente sai em expedições acompanhado de sua porca farejadora de estimação. Seu isolamento só é perturbado às quintas-feiras, quando recebe a visita do jovem Amir (Alex Wolff), seu ambicioso, mas inexperiente comprador. Só que o ancião tem um acordo comercial heterodoxo com o rapaz: ao invés de dinheiro, ele recebe pelas trufas recolhidas os mantimentos necessários para permanecer ali, distante do mundo moderno. E isso inclui não apenas itens básicos, mas também ingredientes especiais que o permitam cozinhar com liberdade e inventividade para si mesmo e seu pet.

O porquê dessa insistência em um isolamento potencialmente melancólico é, de cara, uma das forças motrizes de Pig, mas não é difícil compreender o prazer de Rob na solitude. Sob a névoa da umidade das árvores e banhado pelo sol dourado que incide lateralmente às manhãs, ele parece de fato entrar em estado de graça enquanto divide uma torta rústica de cogumelos com seu bicho de estimação. Apesar de um ar de inquietude ocasionalmente pairar sobre ele, em especial quando revisita uma fita antiga que traz seu nome marcado, esse é um homem que encontrou equilíbrio. Ele encontrou o divino.

O profano invade essa realidade, entretanto, quando a luz cortante de um automóvel desconhecido rasga a névoa que isola o retiro de Rob. Na calada da noite, o ermitão é vítima de um ataque, impossibilitado de salvar sua porca da abdução. Com seu estilo de vida ameaçado, ele é forçado a mergulhar novamente na realidade que havia renegado e retornar à sociedade da qual fazia o necessário para manter-se afastado. Espelhando a jornada de Dante, na Divina Comédia, o acompanhamos enquanto ele mergulha em seu inferno pessoal para ter a chance de reaver seu ente mais querido.

É alternando entre a divagação e o hiperfoco que Cage navega esse início de trama, onde Rob é forçado a recorrer à ajuda da única pessoa com quem mantém contato para ter algum progresso em sua busca: Amir. O jovem empresário, que se veste de forma financeiramente ostensiva e dirige um Camaro amarelo, é o perfeito oposto ao ancião maltrapilho que construiu um estilo de vida capaz de tornar irrelevante o uso do dinheiro. Como improváveis parceiros em uma missão de resgate, eles são o primeiro grande contraponto que o diretor e roteirista Michael Sarnoski e a roteirista Vanessa Block estrategicamente posicionam em um roteiro empenhado em discutir a relação limítrofe entre liberdade artística e comprometimento financeiro.

Porque Rob, logo descobrimos, é um grande artista, mas que optou por negar os frutos de seu talento ao mundo após uma tragédia fazê-lo entender que não era mais movido por amor. Conforme mergulha na vida que deixou para trás — e, portanto, retorna ao meio que abandonou —, o ermitão se solidifica como avatar de uma integridade romântica que nunca permanecerá intocada no contexto da arte de massa ou da arte de elite. Pig retrata de diversas maneiras a delicada relação que essa forma de expressão humana tão pura tem com a escassez de recursos, e ilustra de forma tocante as concessões exigidas da visão artística e da ambição pessoal quando uma obra é moldada pelo potencial de venda, e não pela intenção do autor.

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Outros contrapontos surgem emprestados da cultura gastronômica de luxo, o prisma que Sarnoski e Block escolhem para povoar de maneira colorida os diferentes círculos infernais que devem percorrer Rob e Amir. Seja em um sangrento clube da luta para funcionários de cozinha, à mesa de restaurante três estrelas no Guia Michelin ou em um tenso jantar com um inescrupuloso (e criminoso) fornecedor de ingredientes, a devoção do velho ermitão à relação pura entre arte e amor é constantemente tentada por algo ou alguém que a coloca como irrelevante — só para sair vitoriosa por meio da subversão ou da recusa ao conflito. Remetendo a Keanu Reeves em Matrix Resurrections (2021), e não na franquia John Wick, Cage faz do distanciamento e da recusa à violência sua principal arma de vingança.

Amir, testemunha de toda essa jornada, é quem sai verdadeiramente transformado de Pig. Enquanto Rob escolhe reviver uma dor antiga para poder enfim aceitar um passado que perturbava sua solitude — e, assim, abraçar as limitações humanas de seu pretenso refúgio sagrado —, é o rapaz que vê todo seu estilo de vida desafiado pelas convicções do veterano, percebendo-se carente de mudanças mais radicais. Definindo a si mesmo por meio de posses e da intenção de usá-las como repositório emocional, ele atravessa um duro processo de humanização que desafia sua noção de realidade. Wolff, que brilhou em um papel complexo em Hereditário (2018), conduz essa evolução com uma vulnerabilidade precisa. Também brilham Adam Arkin (Hitch - Conselheiro Amoroso) e principalmente David Knell (Primavera na Pele), impondo ao objeto inamovível representado por Cage as forças irresistíveis que o levam a uma rendição magnética e magnífica.

É também particularmente interessante ver como Pig dialoga com o corpo de trabalho mais recente de seu maior astro, servindo como um perfeito companheiro espiritual para outras histórias humanas sobre dor e amor que tiram o melhor da experiência e das experimentações de Cage, como Joe (2013) e Mandy - Sede de Vingança (2018).

É com o equilíbrio perfeito de todos esses elementos que Sarnoski entrega seu primeiro trabalho como diretor respondendo à síntese proposta nas telas de Caravaggio e Rembrandt; nos lembrando que amor e dor, arte e dinheiro, sagrado e profano são antes de tudo componentes de algo muito mais imediato, palpável e complexo que os conceitos individuais que representam: a vida. Assim, Pig nos lembra do erro frequente e perigoso que pode ser deixar um ou outro desses elementos nos guiar exclusivamente. Como a porca de estimação que conduz seu dono a encontrar valiosas trufas onde menos se espera, o filme nos impulsiona a buscar e valorizar as pequenas coisas que vivenciamos em nossa trajetória.

Nota do Crítico
Excelente!