Negócios e prazer se confundem na linha de trabalho da protagonista de Pleasure. Ou, ao menos, era o que ela pensava quando desembarcou em Los Angeles, determinada a ser a maior estrela da indústria pornô. Uma visão, digamos, romântica, mas certamente condizente com a pouca idade da jovem sueca. Seu nome de verdade? Irrelevante. Basta saber que você a encontrará nos sites e nas redes sociais como Bella Cherry. O que motivou sua ambição? Muito menos. Tão logo sugere que sua decisão tem qualquer relação com um abuso na infância, ela é interrompida por um riso sem graça, como se tivesse contado uma piada de mau gosto. O que importa é que isso é o que ela quer. Não é? Ela quer.
Essa impessoalidade com que a personagem de Sofia Kappel é recebida não é óbvia. Entre sorrisos e palavras de encorajamento, o primeiro set onde grava é quase acolhedor. Diretor, assistente e ator dizem com todas as letras como querem que ela esteja confortável, que ninguém vai forçá-la a nada. E Bella Cherry acredita. Na realidade, ela eventualmente se sente tão à vontade que, enquanto os três se afastam enojados após a gravação, ela deixa o sêmen escorrer no seu rosto e se diverte fazendo caras e bocas para suas redes. No entanto, Pleasure não demora muito para expor que se trata de um ambiente dominado por uma falsa empatia — para dizer o mínimo — e que a impessoalidade é intencional. A cada novo avanço na carreira da sua protagonista, a diretora Ninja Thyberg deixa explícito até para o espectador mais desavisado — ou em absoluta negação — o que está por trás de todo aquele incentivo amigável: um ciclo de violência que deliberadamente enxerga coação como consentimento. Em outras palavras, Bella Cherry não é meramente ingênua. Ela é vítima de uma visão propositalmente turva, que prefere sacrificar corpos e espíritos de mulheres a fazer o mínimo, isto é, admitir que há algo de muito errado ali.
A tese de Thyberg está longe de ser uma novidade. Em pleno 2022, explicar que a pornografia é uma indústria que lucra em cima de abusos é atestar o óbvio, e talvez por isso mesmo Pleasure tenha um grau de previsibilidade: você sabe qual é a moral que a diretora quer deixar tão logo a história começa. Essa assertividade não é de todo ruim. A cineasta aplica sua experiência enquanto pesquisadora da indústria pornô para garantir a verossimilhança do seu retrato, o que é bem-vindo quando se tem um objetivo tão bem delimitado — principalmente em uma época como a nossa, na qual até os fatos mais imediatos são postos em dúvida, e o desrespeito aos direitos mais básicos das mulheres é rotineiro. Contudo, como efeito colateral, traz também um didatismo muito palpável e, por vezes, frustrante, que sacrifica em alguma medida a progressão orgânica da trama.
Espertamente, a cineasta compensa a evidência do seu “subtexto” criando uma experiência imersiva. Valendo-se do POV ("point of view", em inglês), linguagem tradicional do pornô, mais de uma vez Thyberg volta seu olhar para os homens na indústria, tanto para seus gestos e caras grotescas, quanto para sua faceta ridícula, enquanto Bella Cherry grava suas cenas. Do mesmo modo, quando a situação sai do controle, Pleasure traduz em sensações, e não palavras, o que é ser violentada. É, portanto, bastante explícito, mas nem por isso cai no erro de hipersexualizar os corpos em tela. Na realidade, há lampejos dos bastidores que fazem o exato oposto, como a depilação pré-gravação ou da preparação para o anal, ambas representando Bella Cherry não como um objeto de desejo, mas uma pessoa comum ocupada com tarefas mecânicas.
Aliás, enquanto agentes, diretores e atores tratam a jovem como um prop, Pleasure lembra o espectador, aqui e ali, que Bella Cherry tem, sim, um nome, um passado e um mundo interno. Há, por exemplo, momentos simbólicos de confidência com outras atrizes; uma ligação no meio da noite para a mãe, quando já não dá mais para disfarçar seu incômodo e insegurança; e as próprias escolhas questionáveis que ela faz pelo caminho. Ela é, afinal, humana. Contudo, diante da sucessão de abusos, é a protagonista que se esquece do seu status de indivíduo e se curva para o rolo compressor da indústria. Essa caracterização é importante, não só por dar dimensão ao fator sistêmico do problema, como por atribuir à personagem um papel também de agente. É a materialização definitiva da sua humanidade, que escancara como até uma vítima pode perpetuar o ciclo de violência.
A relação com Bella Cherry, porém, não surge sempre de um lugar de empatia — e isso não necessariamente tem a ver com o julgamento que o público faz das suas ações. Na realidade, Pleasure é inconstante: quando não se está literalmente vivendo suas experiências ou, então, no breve momento em que o riso torna o público cúmplice, o subtexto cria uma infeliz distância entre a protagonista e o espectador. São nessas horas que fica claro o dano que o didatismo pode trazer para a experiência cinematográfica: a força do discurso de Pleasure vem quando, em vez de explicar, deixa o espectador sentir.
Mesmo assim, não dá para sair indiferente deste filme. Quer você questione alguns lugares-comum, como a combinação do tema “profano” com a música sacra que embala a trilha, ou a escolha da diretora de não condenar a pornografia em si, mas os abusos dos bastidores, Pleasure já tem valor por simplesmente incitar um debate. Felizmente, o filme não deixa margem para dúvida quando o assunto é consentimento. Aceitá-lo como sinônimo de coação é apenas desumano, uma mensagem que não se restringe à indústria pornô.