Bella Baxter (Emma Stone) mal consegue se conter quando, em um salão pomposo, ouve pela primeira vez uma banda tocar ao vivo em Pobres Criaturas. Ela pula, gira e mexe os braços sem ritmo ou qualquer sugestão de vergonha. Na verdade, ela desbrava todos aqueles estímulos, sonoros e fisiológicos, com uma coragem invejável, que só alguém que desconhece o preço a se pagar para existir tão livremente poderia ter. Seu acompanhante, no entanto, não vê com encantamento aquela cena. Mesmo exibindo sua canalhice com orgulho semelhante, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) corre para tentar fazer com que sua amante não destoe tanto dos demais casais — não uma, nem duas, mas três vezes. Mesmo assim, em todas elas, Bella consegue se libertar de alguma forma e faz o que bem entende na pista de dança.
O resultado é uma coreografia estranha e cômica, que condensa muito bem o tema do novo filme de Yorgos Lanthimos. Com seu humor particular, o diretor grego recria de forma lúdica o cabo de guerra intenso entre desejo e monstruosidade, que tende a penalizar homens e mulheres de modos distintos. Se, para Bella, a simples expressão das suas vontades pode ser razão para que seja subestimada ou taxada de aberração, para Duncan é a desobediência dela que o tira do prumo: com a constatação de que não tem poder sobre o que ela faz ou diz, ele se perde em si mesmo e fica só e desnorteado.
Trata-se de uma ponderação feminista e, em Pobres Criaturas, ela é representada de forma alegórica ao longo de cinco capítulos, conforme o desenvolvimento da mente de Bella se aproxima do seu corpo amadurecido. Entre o sair de casa e explorar o mundo até seu inevitável retorno, Bella tenta dar sentido à existência, com todas as suas contradições, enquanto a questiona. No começo, as dúvidas, angústias e frustrações são direcionadas a God (Willem Dafoe), seu pai e criador que tenta restringir suas experiências em nome da ciência e do seu afeto. Depois, cabe ao amante, que a quer para atender suas ânsias e nada mais; à cafetina Swiney (Kathryn Hunter), que precisa dela para manter seu negócio funcionando; e, enfim, ao marido Alfie (Christopher Abbott), que a usa no seu jogo cruel de poder.
Essa ideia da emancipação, especialmente da mulher, calcada no ato de desafiar o controle — especialmente o masculino — sobre suas mentes e seus corpos não é exatamente original. No ano passado mesmo, à sua própria maneira, Greta Gerwig levantou uma reflexão semelhante com Barbie, e nem ela foi pioneira nesse quesito. Mas, como no caso do filme da boneca, está na forma com que Yorgos Lanthimos representa isso em tela o grande chamariz de Pobres Criaturas.
Bella Baxter habita um mundo em que conto de fadas e surrealismo se misturam. Sua ingenuidade, expressa sem rodeios em epifanias tão contrastante com as normas sociais, está nos tons pastéis, nas mangas bufantes e no seu olhar perdido, mas encantado com tudo o que está à sua volta. Seu maravilhamento é fácil de compreender, e nem só por sua condição à la Frankenstein: ela caminha por paisagens de cores intensas, quase artificiais, que são tão vitorianas, quanto futuristas; convive com animais que, como ela, são metades de seres pré-existentes e, portanto, são estranhos, mesmo quando adoráveis; até sua referência, um homem que solta bolhas de suco gástrico no jantar, é fascinante — curiosamente, mais enquanto filho do que cientista/criador. Bella é parte de uma realidade elevada, excessiva até, mas reconhecível. Inventiva e particular, mas, ainda assim, cotidiana. Monstruosa e bela e, por isso mesmo, tão atraente.
É evidente que esse resultado é crédito de um trabalho excepcional em equipe que, merecidamente, ganhou o reconhecimento da Academia. Repetindo a parceria de A Favorita, Lanthimos e o diretor de fotografia Robbie Ryan usam novamente a grande angular com frequência, mas agora para salientar ora a monstruosidade em cena, ora a singularidade de Bella entre seus pares. Já o aparente desarranjo das suas roupas, muito bem calculado por Holly Waddington, denuncia o estágio da jornada de autonomia da protagonista. A direção de arte de James Price e Shona Heath, por sua vez, contribui para a comédia, com detalhes inusitados em todos os frames. É uma experiência visual, portanto, muito plena, que felizmente só é realçada pela trilha sonora bastante intencional de Jerskin Fendrix: cada corda aparentemente fora do lugar é colocada com precisão, como quem representa o desprendimento de Bella, espalhafatoso como é, naquele mundo oprimido e opressor.
Quer dizer, Pobres Criaturas opera a partir de uma lógica torta, provocadora e meticulosa, mas que não seria tão cativante sem a entrega de Emma Stone como Bella Baxter. É ela quem personifica esse coming of age inusitado e encontra a novidade mesmo dentro de uma jornada cíclica, que repete os mesmos temas em novas chaves. Está na maneira como se move, a princípio de forma tão angulosa como os esboços de Egon Schiele, a expressão do amadurecimento literal de Bella que, nas suas mãos, é tão bem aproveitada enquanto comédia física. Está na maneira como fala objetivamente, a ponto de soar quase imprudente, a liberdade da protagonista, assim como o tom certeiro para transmitir a acidez e a simplicidade do texto de Tony McNamara — acompanhada, aliás, de forma tão cativante por Mark Ruffalo na sua caricatura de um galanteador. Enfim, está na maneira como Stone ocupa toda a tela e se arrisca como nunca antes na sua carreira.
É fato que o risco de Pobres Criaturas se destaca não apenas pelos méritos do filme, mas também por uma carência de Hollywood: há tão pouco espaço para narrativas que sejam minimamente inusitadas, seja em termos de forma ou tema, que a criação de Lanthimos parece mesmo revolucionária. Por isso, por exemplo, se releva algumas hiper simplificações questionáveis — tratar a prostituição apenas como meio de se chegar a autonomia financeira é uma miopia que pode ser danosa — e quando a jornada de Bella dá sinais sutis de esgotamento, pela pressa e pela repetição. Porque, ainda que seja digno de crítica, Pobres Criaturas no mínimo teve a audácia de ter o que dizer.
Contudo, é também fato que o filme não se acomoda, nem se contenta com o básico. Na verdade, Pobres Criaturas tem um compromisso tão firme enquanto obra de arte que está determinado a não deixar ninguém indiferente — mesmo que a reação que receba seja o desprezo de parcela do público por ousar, olha só, incluir cenas de sexo. Curiosamente, é muito pertinente que seja assim. Como no conto de Bella Baxter, desejo e monstruosidade também se confundem do lado de cá da tela — o que só realça sua relevância.