Quando Pequena Grande Vida saiu em 2017, parte da crítica comparou o filme estrelado por Matt Damon com as fábulas morais americanas que Frank Capra realizou nos anos 1930 e 1940, o que não deixa de ser uma surpresa porque o cinema de Alexander Payne sempre esteve mais afinado com o sarcasmo do que com uma evocação de ingenuidade e solidariedade. Payne deve ter levado a comparação a sério porque seu longa seguinte, este Os Rejeitados, envereda pelo terreno capraesco por excelência, que é o conto de Natal.
É um movimento que faz sentido dentro da obra de Payne não apenas por uma questão de amadurecimento, mas principalmente porque o humor cínico que marca as suas primeiras comédias já não parece adequado para dar conta da realidade, nesta era do consumo irônico em que tudo já é mediado pelo ceticismo. Os Rejeitados dá uma guinada em busca de uma inocência perdida, ao mesmo tempo em que preserva um discurso típico dos filmes de Payne, aquele que ironiza a sofisticação liberal progressista versus a crueza sincera da América “simples” do Meio Oeste e do proletariado.
As questões de classe estão no centro dessa trama ambientada em 1970, em um colégio interno da Nova Inglaterra onde cinco alunos precisam permanecer além do ano letivo e fazer companhia a um professor rabugento (Paul Giamatti) e a cozinheira da escola (Da’Vine Joy Randolph) porque não poderão passar o Natal com suas famílias. O recorte histórico não é por acaso; a Guerra do Vietnã ajudou a exacerbar divisões sociais nos anos posteriores ao movimento dos direitos civis dos negros (na trama, o filho morto da cozinheira é o único dentre os jovens do colégio que acabou convocado para a guerra).
Os anos 1970 e 1980 foram também as últimas décadas em que o cinema americano não teve pudores de tratar frontalmente de questões de classe. Em nome de uma fantasia de harmonia social no fim do século, essas questões foram reduzidas a filmes tópicos; hoje, a nova emergência do sindicalismo nos EUA nesta época de trabalho precarizado parece estar reacendendo uma consciência de classe na paisagem hollywoodiana - e Os Rejeitados faz a ponte histórica, por meio do conto moral, entre o registro de época e uma sensibilidade tardia do novo século.
Essa ponte é, ao mesmo tempo, o que o filme tem de mais interessante e também seu ponto fraco. Porque os dois personagens principais - o professor vivido por Giamatti e o aluno protagonista interpretado pelo estreante Dominic Sessa - parecem menos pessoas de 1970 do que dois intelectuais de 2023, um professor e seu pupilo, debatendo “onde foi que erramos”. Dos comentários sobre racismo e farmacologia ao repertório cultural (o fato de Giamatti presentear todo mundo com o estoicismo de Marco Aurélio é super 2023), o filme busca uma pungência e uma veracidade do relato histórico setentista ao mesmo tempo em que não abre mão de ser observador externo atemporal de si mesmo.
Bem, essa continua sendo a grande problemática dos filmes de Alexander Payne, o diretor saído de Nebraska que nunca aceitou plenamente ser incorporado pelo uníssono da mentalidade californiana. Pelo seu próprio tema, pelas boas intenções implicadas na narrativa natalina, Os Rejeitados parece mais “sincero” do que um filme cínico como Sideways (2004), por exemplo, mas os paralelos continuam aí e vão além de Giamatti (e sua garrafa de bebida) refazendo a parceria com o diretor. A cena da sobremesa de cereja em Os Rejeitados tem a mesma função daquele momento do vinho no copo descartável de Sideways: antepor uma certa pureza da “vida simples” contra uma sofisticação que já se assume postiça e artificial nesses filmes. Essa dicotomia simplista é de um voluntarismo que Payne não consegue superar, ainda que ele esteja modulando suas narrativas agora em direção a algo mais ambicioso, histórico e holístico, algo que talvez seja uma verdade americana mais profunda.