É surpreendente que o diretor Paul Greengrass tenha escolhido o gênero de faroeste para discursar sobre divisão política e visão de mundo em diferentes sociedades. Não apenas porque o tema é muito mais frequente em envelopagens de sci-fi, com seus cenários futuristas e distópicos, mas porque Greengrass é conhecido por seu estilo de câmera inquieto, propício para longas de ação como Vôo United 93 ou a franquia Bourne. Mas Relatos do Mundo, longa que leva Tom Hanks a 1870, funciona perfeitamente bem não apenas como obra cinematográfica, mas como um estudo do mundo atual.
De volta às câmeras de Greengrass depois de Capitão Phillips, aqui Hanks é o Capitão Jefferson Kyle Kidd, um veterano confederado da Guerra da Secessão que, após o fim do conflito, passeia de cidade em cidade lendo as principais notícias dos jornais aos cidadãos do país. Em seu caminho, Kidd encontra uma garota perdida, dupla órfã: de família alemã, Johanna foi sequestrada pela tribo Kiowa com quem passou toda sua infância, até que os nativo-americanos foram massacrados pelo homem branco e ela, deixada para trás. A criança não tem terra nem família, e Kidd se dedica a levá-la até seus parentes mais próximos. A jornada, claro, o leva de volta para sua própria casa, um lar que ele refuta retornar desde o início da guerra.
Relatos do Mundo não poderia ter um nome melhor, e é um alívio que a tradução em português manteve o espírito do longa, que envolve problemáticas atuais na jornada do contador de histórias. Ao levar Kidd para relatar notícias, o filme de Greengrass analisa os efeitos do fim da guerra na sociedade estadunidense, especificamente no Sul, derrotado na guerra civil, e onde as cidades refutavam o fim da escravidão. Mas a história - baseada no romance de Paulette Jiles - não é exatamente partidária. Ao fazer de nosso protagonista um veterano confederado (que sutilmente deixa claro que se arrepende da luta), Greengrass se afasta do propriamente político para focar no humano, e em uma sociedade que se recusou a aceitar o progresso.
A jornada de Greengrass se assemelha ao de seu protagonista, no sentido que sua ideia é evitar conflito, mas Relatos do Mundo sabe fazer deste discurso uma empreitada nobre. Kidd pode parecer ingênuo em sua defesa de união acima de tudo, mas sua tese principal é de que informação é o essencial para este fim. Fazendo de forma bem explícita um paralelo com nossa atualidade, Greengrass retrata as bases de fake news em uma pequena cidade do Texas em 1870, em uma das cenas mais bem-construídas do longa.
A relação entre Kidd e Johanna, laço que suporta a trama inteira, também é feita de forma sagaz e foge da dinâmica tradicional ao enxergar as dificuldades de se relacionar com alguém que tem uma visão de mundo profundamente diferente. Na cena em que os dois tentam se comunicar com palavras simples - céu, terra, pássaro - os personagens entendem o obstáculo maior, de conceito acima de semântica. Ao mostrar que Johanna vê a vida como um círculo e Kidd a enxerga como uma linha reta, Relatos do Mundo faz de uma cena tão tradicional, poética.
Mas Greengrass é Greengrass e por isso mesmo o seu faroeste delicado encontra seus auges em momentos de tensão. Sabendo investir bem em suas próprias capacidades e reconhecendo limitações em seus personagens, o diretor acerta ao transformar as cenas de confronto armado em essenciais para a dinâmica entre Kidd e Johanna. É através do combate e em momentos de perigo que o veterano e a criança criam uma aliança real de cumplicidade.
E é exatamente porque a relação dos dois é tão essencial que não haveria uma obra tão completa não fosse as performances de Hanks e da atriz-mirim alemã Helena Zengel, que demonstra uma habilidade assombrosa de se expressar com o olhar. Sobre Hanks, é curioso que tenha demorado tanto para que o queridinho da América aparecesse em um faroeste (até porque ele vive um dos cowboys mais icônicos dos últimos tempos, o Woody de Toy Story). Mas a recompensa de vê-lo na pele de Kidd fez valer a espera, porque sua performance sutil afasta o protagonista do clichê.
Tom Hanks é sempre um deleite de assistir, e não seria difícil ver o seu Kidd relatando notícias por mais horas e horas (apesar desta ser a ocupação do protagonista, infelizmente são poucas as cenas do longa em que este é o foco). Mas Relatos do Mundo tem mais do que isso, e é sustentado por uma construção de atmosfera muito bem feita, construída através da trilha sonora essencial de James Newton Howard e a fotografia de Dariusz Wolski. O clima de Relatos do Mundo te leva para faroeste sem tirar os pés da realidade, mas entrega também um otimismo necessário para os dias de hoje.