Se há um filme de 2024 que demonstra, acima de qualquer dúvida, as possibilidades expressivas do preto e branco no cinema contemporâneo, este filme é Retrato de um Certo Oriente. Nas mãos do diretor de fotografia Pierre de Kerchove, as escalas de cinza são equivalentes a uma aquarela completa - e o uso criterioso do foco e do posicionamento da câmera ajuda, e muito, a vender esse mundo em P&B como o ambiente vívido que o cineasta Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus) precisa para nos envolver em sua história de imigração, integração e exclusão.
Os protagonistas são Emilie e Emir, irmãos libaneses em meados do século passado, que fogem de uma guerra no país natal para a região Norte do Brasil. Na viagem, Emilie conhece e se apaixona por um comerciante muçulmano, Omar - mas, conforme a jornada vai se esticando, fica claro que Emir vai fazer de tudo para separá-los. A trama, retirada do livro de Milton Hatoum, sugere que as objeções de Emir vêm de um ciúme doentio, possivelmente incestuoso, mas o filme postula que esse sentimento se mistura a uma inadequação mais profunda sentida pelo personagem, sexualmente mal resolvido e culturalmente isolado.
De uma forma ou de outra, essas entrelinhas se concretizam muito mais em imagens e sons do que em texto. Retrato de um Certo Oriente é excelente em evocar sentimentos através de estímulos auditivos, misturando muitas vezes os barulhos do ambiente com as ações humanas realizadas neles. Daí que uma sequência de dois personagens comendo frutas na floresta deságua em uma cena de sexo de forma bem natural - são os personagens obedecendo às demandas de um mundo sensorial construído com esmero ao redor deles.
É a abordagem certa para uma história tão baseada em personagens à deriva, tentando se encontrar em um novo ambiente… e sobre quem se dá bem ou mal nesse processo. E ainda bem, também, que a protagonista Wafa’a Celine Halawi se localiza com habilidade dentro desse tom internalizado, encontrando formas de Emilie se comunicar com o público, com a câmera, mesmo que ela não consiga se comunicar com aqueles ao seu redor. Apesar da incerteza da personagem, a atriz - nascida nos Emirados Árabes, e aqui em sua primeira produção brasileira - nunca nos deixa duvidar da força expressiva que a empurra adiante, conforme os obstáculos se multiplicam em seu caminho.
Retrato de um Certo Oriente não é o primeiro e não será o último drama de imigração que articula a tragédia e o triunfo de construir uma vida em um novo lugar (e, necessariamente, destruir a vida que se vivia no antigo). Mas é um sentimento sempre pungente de se ver na tela, e o filme de Marcelo Gomes encontra em suas escolhas estéticas os meios para expressá-lo de uma forma que se apresenta genuína. É mais do que o bastante para valer sua 1h30 de projeção.