É fácil entender o fracasso monumental de bilheteria de Rock em Cabul (Rock The Kasbah) por razões políticas: a opção de desafiar as tradições do Afeganistão a fim de construir uma narrativa hollywoodiana de redenção (e, ainda por cima, debochada) foi patrulhada e recebida como um desrespeito. Mas é difícil, usando critérios estéticos, justificar a rejeição popular sofrida por este que talvez seja o mais inspirado trabalho de direção do realizador Barry Levinson desde Mera Coincidência (1997), seu último sucesso. E, antes que se disseque seu vigor formal, salta aos olhos um Bill Murray em estado de graça, fazendo de tudo para justificar a confiança de diretor e produtores em dar a ele um papel de protagonista que vá além de piadas ou trapalhadas, à altura de seus bons trabalhos dos anos 1980 (como Recrutas da Pesada). Ele mantém o riso em riste da primeira à última cena, sabendo dosar bem elementos de melodrama nas passagens da trama ligados ao congraçamento e ao estranhamento cultural.
No fundo, é sobre alteridade que se fala em Rock em Cabul, ou seja, a estranheza que duas culturas distintas produzem quando aproximadas, sobretudo se a aproximação for forçada e mediada pela arte – no caso, a música. Gaiato como sempre, Murray é Richie Vance, um caça-talentos musicais, dono de uma fama que parece ter sido forjada por ele mesmo, em busca de uma chance de se reinventar no mercado apostando num show no Afeganistão. Mas sua “estrela” (Zooey Deschanel) acaba amarelando na hora de cantar por lá, deixando-o sem sua matéria-prima de trabalho, sem dinheiro e sem passaporte, na mira de um mercenário sem causa ne honra, Bombay Brian (um Bruce Willis deslocado). Mas sua sorte ameaça mudar quando ele encontra uma jovem afegã isolada nas montanhas, Salima (Leem Lubany), cuja garganta de ouro pode levá-la a ser a vencedora de uma espécie de Ídolos afegão. Mas existem tradições (em especial o preconceito contra as mulheres) que pode atrapalhar a jornada da jovem e a volta por cima de Vance, que acaba se metendo numa guerra tribal.
Orçado em US$ 15 milhões e filmado no Marrocos, embalado numa trilha sonora preciosa de Marcelo Zarvos, compositor paulista classe AA, Rock em Cabul revive a habilidade (há muito perdida) de Levinson em manter as rédeas de uma narrativa capaz de flertar com vários gêneros (comédia, drama, guerra, thriller político) sem jamais perder as rédeas do que está no DNA da intriga central. E, neste caso, a intriga fala de um mútuo exercício de reciclagem pessoal – a de Vance, de um lado, e a de Salima, do outro – relacionada à esperança: a esperança de um futuro profissional mais luminoso e a esperança por tempos de paz. De quebra, ainda vemos uma Katie Hudson luminosa como a garota de programa que vai auxiliar Vance em sua odisseia no deserto.
Esse domínio azeitado das idas e vindas do roteiro espana a ferrugem que tomou conta das engrenagens criativas de Levinson a partir dos anos 2000, quando uma série de fiascos de público e crítica, iniciada com Vida Bandida (2001), tirou dos eixos uma das sólidas carreiras da indústria americana. Ganhador do Urso de Ouro no Festival de Berlim e do Oscar de melhor direção por Rain Man (1988), ele ganhou notoriedade ao dirigir sucessos como Bom Dia, Vietnã (1987) e O Enigma da Pirâmide (1985), tendo sido parte indelével da construção do imaginário pop dos anos 1980. Mas o excesso de burocracia em seu olhar – muito refém da lógica causa e efeito nos roteiros – acabou travando sua evolução. Rock em Cabul permite a ele mais e melhores riscos – sempre amparado por Murray – que, infelizmente, não foram apreciados como deveriam. Mas nem por isso, esta comédia pacifista perde seu brilho.