Há quase sempre nos filmes de Woody Allen um protagonista hipersensível que canaliza as neuroses do mundo, seja ele alter-ego do cineasta ou não, a não ser quando a sua ficção assume uma chave melodramática. Então esse protagonista, frequentemente mulher e quase sempre de uma ou duas classes abaixo da elite intelectual que Allen frequenta, se percebe incapaz de reflexões "superiores", de tão tomado que está dos imediatismos do dia a dia. Da Mia Farrow de A Rosa Púrpura do Cairo à Cate Blanchett de Blue Jasmine, essas figuras sobrecarregadas das questões mais mundanas parecem cegas diante das ilusões que criam, e com a Kate Winslet de Roda Gigante não é diferente.
Allen faz aqui um movimento cheio de ressalvas para se adiantar aos julgamentos do espectador: seu narrador surge bronzeado na figura do salva-vidas e pretenso dramaturgo vivido por Justin Timberlake, avisando que o relato a seguir - sobre traições, triângulos e febres amorosas de veraneio - chega enviesado pelos seus próprios romantismos. Roda Gigante começa se organizando como Tiros na Broadway: estamos menos num melodrama típico e mais numa farsa que assume forma de melodrama, para fins de comédia. Se Allen sempre vê na tragédia um potencial cômico, isso volta a ficar latente neste seu novo filme.
A farsa é demarcada pela fotografia, principalmente na forma como a câmera busca os close-ups nos momentos mais histéricos, e como as escolhas musicais de Allen sublinham as viradas com ironia. Depois de fazer Café Society com Vittorio Storaro, o cineasta parece aqui perder a vergonha de se apropriar da marca barroca do diretor de fotografia, e Roda Gigante se desenrola como uma versão vaidosamente carnavalesca dos velhos melodramas de dona-de-casa de Douglas Sirk, com planos-sequências que se prestam muito mais a exibir a teatralidade das cenas e dos crescendos de caos do que necessariamente a uma construção de dramaturgia.
Quem se vê refém desse processo criativo - que é acima de tudo um processo desapegado, de um autor que se põe acima da esfera social dos personagens que cria, e que por conta desse distanciamento estetizado gera com dificuldade uma empatia pelos personagens - é Kate Winslet. Assim como aconteceu com Cate Blanchett em Blue Jasmine, sua atuação é digna de uma lembrança no Oscar, menos pela personagem que cria do que pela disposição em trabalhar com esmero dentro dos espaços e das modulações que Allen propõe.
Winslet brilha, literalmente, ao fim de Roda Gigante, com o privilégio de monólogos bem enquadrados pela luz boa de Storaro, mas o gosto agridoce deixado por este melodrama - que não alcança, como Tiros na Broadway, o mesmo equilíbrio ideal entre farsa e empatia - volta a lembrar a dificuldade que Woody Allen tem de lidar com questões (de gênero, de classe) que não são as suas.