Roma está constantemente entre dois caminhos. É pessoal e grandioso, popular e intelectual, tecnológico - rodado em 65mm digital e lançado em uma plataforma de streaming - e clássico, feito em preto e branco com a mesma ousadia dos movimentos cinematográficos das décadas de 1950 e 1960. O título, uma referência a Colonia Roma, bairro da Cidade do México, também remete a Roma, Cidade Aberta, filme-símbolo do neorrealismo italiano assinado por Roberto Rossellini. Ao mesmo tempo, seu realismo é mágico, próximo dos Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez. As rotas são muitas, mas Alfonso Cuarón se mantém firme. Essa é a sua história e também a de Cleo.
Ao revisitar a própria memória, o cineasta escolhe olhar para ela, a empregada de origem indígena de uma família branca de classe média. Resgata, assim, não apenas os seus anos de formação, mas todas as particularidades do passado do país. O México no início dos anos 1970 fervilhava entre revoluções populares, sociais e a influência da cultura estrangeira. Cleo, porém, se mantinha ingênua, centrada nas suas obrigações: lavar o pátio, buscar as crianças na escola, segurar o cachorro enquanto o patrão entra na garagem, lavar a roupa, colocar os pequenos para dormir.
Até que tudo se transforma. A família perfeita desmorona, com o pai que sai de casa, a mãe que não se conforma com o fim do casamento e os filhos jogados de um lado para o outro na confusão dos adultos. Enquanto isso, Cleo se apaixona, engravida, é enganada e deixada à própria sorte. Duas mulheres de diferentes origens compartilham a dor do abandono. Juntas, reencontram a resiliência que segura o mundo frente às paixões autocentradas. Eles buscam realizar desejos, carnais ou revolucionários, elas são obrigadas a escolher o cotidiano - não por si mesmas, pelo bem de outros.
Dessa relação, contrasta também a experiência de Marina de Tavira (Sra. Sofía) com a inocência de Yalitza Aparicio (Cleo) no seu primeiro trabalho como atriz. Tavira dá, em segundo plano, toda as camadas do processo de cura da sua personagem - do desespero do lar desfeito para a raiva, a aceitação e a volta por cima. Já no centro da narrativa, Aparicio reflete a doçura, as dores e os aprendizados de Cleo com uma verdade crua e magnética. As lágrimas que surgem ao testemunhar sua história não são de pena ou culpa, mas de puro afeto. Amá-la é um privilégio que Cuarón compartilha por 2h15min.
O cineasta, que além da direção e do roteiro também assina a fotografia e a montagem (ao lado de Adam Gough), aplica a mesma admiração na forma como retrata seu país, usando o formato de 65mm para preencher completamente a tela. É como se na vida adulta reencontrasse o olhar da infância, cujo fascínio por cada descoberta aumenta o tamanho e a importância de tudo. Dentro de casa, foca nos detalhes e cria narrativas em torno do mundano - na água que corre pelo pátio, no carro gigantesco que não cabe na garagem, no longo caminho até o tanque de lavar roupas. Do lado de fora, coloca seus personagens em um universo vivo, inusitado, barulhento e em constante movimento, reforçando a sensação de solidão por meio da multidão que os cerca. Em outros momentos, soma a calma interior e o caos externo. Dentro de um hospital, com a câmera parada, reflete o desespero de Cleo: tudo acontece ao seu redor, como um pesadelo de que ela não consegue despertar.
O que Cuarón faz em Roma é raro. São camadas e camadas sobrepostas para reproduzir a complexidade do seu imaginário afetivo e das relações sociais de um país. Entre muitas inspirações, referências e técnicas, sua assinatura está na sinceridade com que olha para si mesmo e para os seus personagens, encontrando beleza e verdade no que muitos menosprezam. Esse é um filme simples e complicado, como a própria vida.