Rustin está em seu melhor nas cenas em que o diretor George C. Wolfe se vê confortável para brincar com a forma cinematográfica. Desde que estreou no telefilme Lackawanna Blues (2005), após trabalhos aclamados no teatro, Wolfe tem se mostrado um cineasta singularmente dedicado ao ritmo - ao das falas de seus atores, sempre cronometradas, entrelaçadas umas às outras com cuidado; e ao das próprias costuras do cinema, incutindo algo de verdadeira e surpreendentemente musical naquele fluxo difícil de capturar da subjetividade e objetividade da câmera, especialmente desde que encontrou no montador Andrew Mondshein (A Voz Suprema do Blues) o parceiro perfeito nessa empreitada.
Daí que, de ponta a ponta (mas em alguns momentos mais do que outros), Rustin parece animado com essa musicalidade, que sobe a energia do que poderia facilmente ser só mais uma cinebiografia burocrática feita para buscar - e conseguir - algumas indicações ao Oscar. Há algo de quase alarmante nas cenas em que isso fica mais evidente, como no momento em que Rustin (Colman Domingo) está subindo em um ônibus para viajar até a casa de Martin Luther King (Aml Ameen) e o filme faz um corte seco para um flashback em preto e branco dos dias de protesto do ativista dentro de outro ônibus, em outra cidade, levando uma surra de policiais brancos.
Em outra cena, Wolfe entrecorta um sermão dado pelo pastor Elias Taylor (Johnny Ramey) em sua igreja, falando sobre um Deus de amor, aceitação e companheirismo, com flashes da noite de paixão que ele divide com Rustin em seu apartamento. Há nesses momentos uma força expressiva quase indomável no trabalho do diretor, e essa mesma força permeia o restante de Rustin de forma mais discreta. Wolfe claramente tem a sofisticação e a paixão necessárias para harmonizar as emoções levantadas pelo texto de Julian Breece e Dustin Lance Black, a fisicalidade dos atores que reuniu em seu elenco, especialmente um Colman Domingo que caminha a linha tênue entre extravagante e caricato, e o jazz rasgado que anima a trilha de Brandford Marsalis.
É frustrante, portanto, que Wolfe não seja servido com um roteiro tão forte quanto poderia ser - ou, tendo em vista a relevância histórica do biografado, deveria ser. Impossível saber exatamente quanto do texto de Breece (Olhos que Condenam), originalmente escrito em 2015 para um telefilme da HBO, sobreviveu às revisões de Black (vencedor do Oscar por Milk - A Voz da Igualdade), contratado após a Netflix assumir o projeto em 2019, mas o resultado final é uma história bem recortada de afirmação pessoal que se sente na obrigação de recorrer ao didatismo e à verborragia para preencher as lacunas advindas desse recorte.
Rustin abre e fecha o arco narrativo do protagonista nos lugares perfeitos para transmitir a construção e desconstrução do lugar que o ativista real ocupava dentro do movimento pelos direitos civis nos EUA dos anos 1960, e sabe como se mover com agilidade e assertividade do ponto A para o ponto B. São as “gorduras” que incomodam, os lugares para os quais o filme escolhe se estender além e após o fechamento desse arco, recorrendo a dispositivos óbvios - longas tomadas dos rostos dos ativistas envolvidos na Marcha a Washington, olhando admiradamente para seu mentor Rustin enquanto ele cata o lixo deixado para trás nos protestos - que só fazem diluir a mensagem mais poderosa que o filme tem a passar.
Este é, afinal, uma história sobre como as singularidades que carregamos se prestam à luta coletiva. Essa conexão entre íntimo e público, entre particular e universal, encontra seu habitat natural nos paralelos subentendidos que o cinema-jazz de George C. Wolfe parece produzir sem muito esforço do éter da narrativa e explicitar em tela. O diretor, enfim, faz tudo o que pode para dar asas a Rustin. O que as obrigações burocráticas impostas pelo script (e, talvez, pela máquina algorítmica de ambição acadêmica da Netflix) fazem, infelizmente, é limitar quão alto ele pode voar.