Não surpreende que a crítica americana tenha demonstrado pouco entusiasmo por Sede Assassina. Afinal, Hollywood está acostumada a trazer diretores estrangeiros para os Estados Unidos e vê-los criar odes cinemáticas à iconografia do país - vide o alemão Wim Wenders e seu Paris, Texas; o britânico Ridley Scott e seu Thelma & Louise; Wong Kar Wai, que saiu de Hong Kong para fazer o elegíaco Um Beijo Roubado. Largas planícies alaranjadas, homens de chapéu de caubói e mulheres com o rosto marcado pela poeira, carrões que refletem o brilho do neon em seus capôs encerados, lanchonetes e bares à beira da estrada povoados por tipos taciturnos… enfim, a mitologia americana.
O argentino Damián Szifron, alçado ao palco internacional por conta do sucesso de Relatos Selvagens, não está interessado nessa mitologia americana. Convidado a Hollywood para fazer Sede Assassina, ele escolhe observar outras locações e outros movimentos humanos que tipificam os Estados Unidos: as frias ruas das metrópoles, ladeadas por fachadas luminosas exibindo marcas de luxo; as superfícies ascéticas dos shoppings, quebradas pelos restos de comida deixados em cima das mesas; festas de arromba em coberturas de prédios de luxo; reuniões de família dentro de apartamentos grandes iluminados por luz amarela; casas de subúrbio marcadas pela tela gigante da TV, sempre ligada, ao fundo.
De fato, a primeira vez que encontramos a protagonista de Sede Assassina, a policial Eleanor (Shailene Woodley), ela está respondendo a uma chamada no tipo de restaurante urbano barato que os EUA mitologizaram como o local aconchegante onde pessoas e histórias de um bairro se encontram. Ela está lá, no entanto, porque o dono do lugar parece decidido a expulsar uma moradora de rua que está “demorando demais” para terminar sua refeição - pela qual ela pagou, diga-se de passagem. É a primeira quebra de expectativas entre as muitas que o filme traz em seus minutos iniciais.
Enquanto tenta resolver a situação, Eleanor é convocada para outro canto da cidade, onde um atirador misterioso abateu nada menos do que 29 pessoas nos prédios ao seu redor, perturbando (para dizer o mínimo) festas de Ano Novo de ciadadãos de todas as classes sociais, etnias e idades… enfim, vítimas que não parecem ter conexão nenhuma entre si. Rápida em seu raciocínio quando se aproxima da cena do crime (ela é a única a pensar em filmar os rostos dos moradores que fugiam do prédio onde estava o atirador), a protagonista é recrutada pelo agente do FBI Lammark (Ben Mendelsohn) para uma posição importante na investigação.
Sede Assassina se aproxima sem nenhum pudor da feiúra aleatória da epidemia de ataques armados nos EUA, mas sua maior audácia é localizar e centralizar as raízes culturais da podridão americana: o consumismo e o individualismo como dois lados da mesma moeda; a crueldade interpessoal como sintoma da mentalidade que preza o sucesso a qualquer custo; a desigualdade institucional e econômica como combustível da supervalorização da violência. A câmera de Szifron e do diretor de fotografia Javier Juliá é implacável, passeando placidamente por uma cidade à beira do colapso, que esconde suas rachaduras por trás de vitrines luminosas e simula choque quando uma delas, por puro desespero, resolve retomar o protagonismo.
Como eu disse: não surpreende que a crítica local tenha se incomodado tanto com Sede Assassina que se viu (conscientemente ou não) impulsionada a minimizar suas virtudes - mas isso não tem nada a ver com a gente, aqui no Brasil. Por aqui, e em outros mercados internacionais, o longa de Szifron tem todo o potencial de ser abraçado como um bem-vindo retorno a uma tradição americana que, essa sim, é digna de respeito: a de thrillers policiais com propósito narrativo, apuro técnico e originalidade de personagem. Quando foi que paramos de amar filmes assim? Em algum lugar entre Seven e Os Infiltrados?
A morte do “filme médio”, tanto falada nessa era em que apenas grandes franquias se garantem na bilheteria, talvez tenha um pouco ou muito a ver com isso. A expectativa do público, temperada por anos de épicos de US$ 200 milhões que terminam com um raio apocalíptico apontando para o céu, parece apontar que é preciso mais do que atuações cativantes (Mendelsohn está especialmente brilhante aqui, articulando a decepção corporativa e as armadilhas da ambição como poucos poderiam, enquanto Ralph Ineson faz um vilão excelente como de costume), um roteiro cheio de garra e uma direção expressiva para fazer um filme “que valha a pena”.
Eu discordo, e veementemente. Os choques, prazeres e sensações de Sede Assassina são mais do que o bastante para justificar uma ida ao cinema. Sua excelência não é corriqueira, e não merece ser enterrada por debaixo do filme de herói do momento.