O cinema precisa ser moral? Bom, da última vez que Hollywood respondeu “sim” para esta pergunta, o resultado foi o Código Hays, um documento que ditava as regras do fazer cinematográfico dentro dos grandes estúdios americanos. A lista bania, entre muitas outras coisas, diálogos com palavrões ou profanidades (no sentido de afronta à Igreja Católica, mesmo), cenas de nudez, representatividade LGBTQIA+, o retrato de relações interraciais, e por aí vai. Estabelecido nos anos 1930, o Código só deixou de vigorar mesmo em 1968 - não à toa, alguns anos antes do renascimento do cinema americano com a chamada Nova Hollywood.
Deixando de lado o dilema óbvio de quem dita o que é moral ou imoral para todo mundo, um dos maiores problemas de tentar imputar moralidade à arte, no fim das contas, é que o foco dos artistas deixa de estar em boas histórias - o que interessa são histórias boas, de boa índole, que ensinem uma boa lição. Durante boa parte de suas 2h de duração, Sharper - Uma Vida de Trapaças é uma boa história, contada com floreios estilísticos pra lá de intrigantes… o problema é mesmo quando ele resolve que quer ser uma história boa.
Resumir a premissa do filme do Apple TV+ é uma empreitada temerária. Se eu te contasse o que acontece no comecinho do filme, você me acusaria de te enganar e o resto desta crítica faria pouco sentido, mas se eu te contasse detalhes do que o longa revela depois estaria te entregando todos os spoilers de bandeja. O melhor mesmo é optar por uma descrição mais de vibe do que de trama, então lá vai: os roteiristas Brian Gatewood e Alessandro Tanaka (Superstore) miram no noir contemporâneo, trocando de ponto de vista narrativo o tempo todo - o que é sinalizado por letreiros na tela com os nomes dos personagens - para se manter sempre um passo à frente do espectador nessa história cheia de trapaças e “re-trapaças”.
Na direção, Benjamin Caron (vencedor do Emmy por seu trabalho em The Crown) acompanha as reviravoltas do texto com mudanças de estilo audaciosas. Melhor ainda é perceber que as escolhas dele fazem total sentido para o objetivo do filme em cada um de seus segmentos: quando Max (Sebastian Stan) é o foco, por exemplo, Caron e a diretora de fotografia Charlotte Bruus Christensen (Um Lugar Silencioso) transformam Sharper em um thriller urbano ultra estilizado, abusando de luzes coloridas e superfícies espelhadas para tentar nos envolver em um mundo tão sofisticado que é impossível afastar a impressão de que ele só pode ser uma ilusão.
Já quando o centro das atenções se torna Madeline (Julianne Moore), Caron e Christensen mudam a chave tonal para a de um melodrama doméstico - só troque a casinha com varanda de classe média nos subúrbios por um apartamento de milhões em Nova York -, deixando os personagens se moverem muito mais realisticamente pelos espaços e nos bombardeando com iluminação dourada e takes contemplativos do horizonte. De novo, não é que eu queira estragar alguma coisa, mas é importante dizer que todo esse esforço estilístico está a serviço da(s) peça(s) que o filme prega no espectador - não como forma de guiá-lo, mas como forma de convencê-lo de que está sendo guiado.
Sharper, enfim, é absurdamente preciso ao usar a forma cinematográfica como instrumento de enganação. E não só isso: o filme parece se divertir imensamente com o jogo que cria para si mesmo, assim como claramente se divertem os atores que ele chama para jogar. Sebastian Stan, por exemplo, refina à perfeição o simulacro de masculinidade mimada que ensaiou em filmes como Fresh e séries como Pam & Tommy, criando um homem inteiramente composto de poses e fachadas, tão enfurecedor quanto estranhamente prazeroso de se assistir com seus ataques de birra que ultrapassam o limite do absurdo.
O curioso é que nem por isso Max deixa de ser (pateticamente) humano aos nossos olhos, e o mesmo vale para os outros personagens moralmente dúbios de Sharper - vide o trabalho excelente de uma Julianne Moore tipicamente expressiva (e atipicamente bem humorada em suas escolhas). Por isso até a quebra final da trama causa desconforto: depois de gastar tanto tempo e energia criativa para nos enredar no mundo sedutor desses vigaristas, nos convencer de que o ser humano quer sim viver só pelas aparências, ao menos por essas duas horinhas, Sharper resolve que é o momento perfeito para nos ensinar uma lição de moral.
A ideia é claramente implantar uma última reversão de expectativas, nos mostrar de novo que não estávamos vendo o quadro completo - nem o do plot, nem o da exploração de impulsos humanos que o filme tenta fazer. O problema é que ninguém gosta de tomar uma lição de moral, muito menos enquanto assiste a um filme. A cumplicidade entre Sharper e o público acaba quando ele resolve nos repreender pelo quanto nos divertimos com essa história, a boa vontade de ser enganado dando lugar àquela irritação que surge quando alguém quer se mostrar superior a você.
Cair na lábia de um malandro, afinal, só é divertido quando você sabe muito bem o que está fazendo - e quando o malandro em questão é charmoso o bastante para que você não se importe.