Antes de ser uma tendência, o filme feito quase sem diálogos (como Um Lugar Silencioso e o recente Ninguém Vai te Salvar) parece ser um sintoma de uma procura meio desesperada de Hollywood por novidades. Talvez seja essa a forma que o chamado cinema de atrações tomou neste período de crise criativa: exacerbando um gimmick, uma trucagem, como se ela fosse uma decisão autoral ousada e sem concessões.
É o caso de O Silêncio da Vingança (Silent Night), o primeiro filme americano do diretor chinês John Woo em 20 anos. Woo dispensa apresentações; o cinema de ação que ele exportou de Hong Kong para o mundo a partir do fim dos anos 1980 influenciou todos os cineastas que hoje reivindicam para si a vanguarda desse gênero, de Gareth Evans a Chad Stahelski. Talvez Woo esteja, neste retorno hollywoodiano, interessado em reclamar seu título de volta, e sublinhando sua influência; O Silêncio da Vingança emula o The Raid de Evans e tem entre seus executivos Basil Iwanyk, produtor do John Wick de Stahelski.
O filme se ambienta numa Los Angeles que funde um tropo recorrente de cinema de ação (a horizontalidade da cidade se presta facilmente à velocidade das perseguições e caçadas das guerras de gangues) com um mal estar social que os EUA vivem hoje muito intensamente (a desesperança nos centros urbanos que vem da brutalização do convívio e da desigualdade econômica). É com muita rapidez que O Silêncio da Vingança nos situa nessa L.A. de pavor, porque logo na cena de abertura o protagonista, interpretado por Joel Kinnaman, leva um tiro na garganta e perde a voz.
Por trás da trucagem (tirar a voz de Kinnaman justifica contar integralmente o filme sem diálogos) existe uma metaforização cuja carga dramática não pode ser menosprezada; temos aqui um personagem extirpado de sua cidadania (a imagem do sangue no pescoço sendo drenado pelo canudo de sucção se fixa fortemente no início) que, como nós, se vê incapaz de influenciar a realidade ao seu redor, nem ser ouvido nos seus dramas particulares. Essa metáfora da mudez ressoa; é como se Woo estivesse pegando emprestado uma Los Angeles de John Carpenter onde o futuro da desesperança se adianta e se instala no presente como um pesadelo que se vive desperto.
Essa base dramática permite que o longa se diferencie da maioria dos thrillers de vingança que a indústria tem feito cada vez mais. (Às vezes parece que o único filme feito para o público masculino com mais de 35 anos é justamente esse, e só muda o ator principal.) A força dessa metáfora se dilui, porém, na escolha de fazer de O Silêncio da Vingança um exercício de trucagem: não apenas Kinnaman permanecerá calado (o ator sueco responde a esse convite com muito mais expressividade no olhar do que ele estava acostumado em anos recentes) como todos os outros personagens também, e o texto falado se resumirá a murmúrios e intervenções gráficas na tela.
O efeito imediato dessa escolha é que toda a preparação de Kinnaman para a sua vingança se desenrola sem muito peso. Fica parecendo que o espectador está assistindo a uma longuíssima cena de montage - aquele recurso, muito popular em filmes-de-assalto ao som de uma música pop descolada, em que vemos relances breves de uma longa preparação, mostrada em tempo comprimido. Kinnaman malha, aprende a dirigir, a atirar, aprende a ser um justiceiro, enfim, e seguimos tudo isso com o desinteresse de uma montage. Woo não consegue injetar gravidade nesse processo que, nos filmes de vingança, são sempre uma coisa compulsória mesmo.
O Silêncio da Vingança volta a ficar mais interessante quando a catarse do clímax de fato se instala, e o diretor chinês reafirma seu talento para a coreografia de ação neste filme que, embora não tenha a fúria de um Fervura Máxima nem a espirituosidade de um A Outra Face, pelo menos esbanja certa elegância de câmera. Nota-se isso no cuidado de encerrar um movimento de porradas ou um desfecho de tiroteio sempre com um enquadramento límpido, escolhido conscienciosamente. Por trás do frenesi da ação existe, portanto, um rigor na escolha do plano; a ideia é envolver o espectador no impacto e na agilidade da ação mas nunca privá-lo de uma perspectiva privilegiada da ação.
Talvez isso não baste para fazer de O Silêncio de Vingança um filme notável ou pelo menos um filme à altura da expectativa de ver John Woo de volta aos EUA. Na verdade, a busca por uma certa “pureza” narrativa - a insistência nos planos-sequências, a trucagem da falta de diálogos - talvez até denote certo conservadorismo. Rei destronado, Woo estaria procurando aqui uma verdade cinematográfica implícita no fluxo visual, que o cinema sonoro teria vitimado com a primazia do texto, então reivindicar seu posto estaria associado a recuperar essa dita pureza do que é essencial à narrativa cinematográfica.
Mas no fim das contas O Silêncio da Vingança acaba sendo tão literal, nas amarras que escolhe para si, que quaisquer promessas de se aproximar de um cinema de fluxo, cinético, são abortadas no seu próprio ensaio. Obviamente as possibilidades do cinemão americano hoje se soterraram no texto, no didatismo, na literalidade, mas quando renega os diálogos um filme como O Silêncio da Vingança não vem para revolucionar a contação. Pelo contrário: parece mais um salvamento feito à força de uma certa autoridade que ninguém reconhece mais.