Do começo ao fim, desde um cocô verde e leites vencidos até tanques militares e bombardeios, Sinédoque, Nova Iorque (Synecdoche, New York, 2008) ecoa os temas da atualidade nos EUA: a paranóia, o vício em medicamentos, o temor da guerra. Ou seja, neste seu primeiro filme como diretor, Charlie Kaufman, o roteirista mais incensado de Hollywood, autor dos textos que deram origem a Quero ser John Malkovich, Adaptação e Brilho eterno de uma mente sem lembranças, mostra que não vive à parte da realidade.
Sinédoque, Nova Iorque
Sinédoque, Nova Iorque
Sinédoque, Nova Iorque
Mas não se deixe enganar, estão lá também as obsessões de Kaufman: particularmente, o senso de inadequação masculino, a ânsia de se expressar e a metalinguagem, que se fundem na neurótica idéia de que quem não vive de arte está fadado a morrer na mais completa incompletude.
O alter-ego de Kaufman desta vez é o diretor de teatro Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman, de Capote), que, depois de passar por um clínico geral, um oftalmologista e um neurologista, descobre ter sicose. É uma doença de pele, mas, como o personagem bem coloca para a sua filha, para virar psicose basta apenas uma letra. Então não demora para Caden achar que vai morrer logo. Logo e sozinho, porque sua mulher (Catherine Keener) está partindo para a Alemanha, com a filha, sem dizer quando volta.
A salvação de Caden chega pelo correio. Uma carta de uma fundação que "subvenciona a genialidade", premiando Caden com um orçamento gordo para a montagem de uma peça singular. O diretor de teatro vê ali a chance de encenar seu testamento. Daí vem a explicação do título cabeça do filme: sinédoque é a figura de linguagem que toma a parte pelo todo. Dentro de um galpão, Caden Cotard constrói uma Nova York quase em tamanho natural, e ali passa anos tentando reduzir (ou aumentar, no caso) a sua peça até alcançar a perfeição.
Por mais que Kaufman se negue a usar as marcas narrativas tradicionais (a compressão do tempo se dá sem aviso, por exemplo), não é difícil entender o que está acontecendo em Sinédoque, Nova Iorque. É Caden Cotard cada vez mais tomado pela sua obra, até a hora em que o próprio Caden vira ator e personagem (coadjuvante, ironicamente) da peça que estava dirigindo. É Charlie Kaufman afundando de cabeça no mal-estar - ou na agradável dormência, vai saber - de ser consumido por sua própria criação.
Kaufman parece ter total consciência de que artistas são engolidos pelos monstros que gestam - afinal, é essa a história que ele está contando aqui. O problema, neste seu primeiro esforço de direção, é que Kaufman, ainda que ciente, não sabe evitar as contra-indicações da entrega total: há muito texto prolixo no filme, monólogos que tentam dar conta da complexidade da vida e da morte em poucos minutos. Sinédoque, Nova Iorque até tem momentos geniais, como a melancólica mania de Caden de limpar a(s) casa(s) para ver se tem a família de volta, mas não é sempre que Kaufman entende que a arte reside nessas pequenas coisas.
(Na verdade, metaforicamente, entende, sim, porque Caden inveja as pinturas em miniatura que sua esposa faz.)
Quando era só roteirista, Charlie Kaufman já era ansioso assim, tendendo para a grandiloquência desenfreada, mas Spike Jonze, diretor de Malkovich e Adaptação, conseguia traduzir muita dessa verborragia em subtexto. Agora Kaufman está por sua própria conta - o que acaba só aumentando a ansiedade.