Quando o ator Tyler Perry foi escolhido para ser o novo Alex Cross no cinema, substituindo Morgan Freeman, que viveu em Beijos que Matam e Na Teia da Aranha o detetive criado nos livros de James Patterson, muita gente reclamou. Conhecido por suas comédias para o público negro, como a cinessérie da desbocada Madea, Perry "não estaria no nível" da gravidade exigida pelo papel.
a sombra do inimigo
a sombra do inimigo
Ironicamente, A Sombra do Inimigo (Alex Cross) se leva tão a sério que, neste fim de ano, com certeza é um dos mais fortes candidatos a comédia involuntária de 2012. E de todos os responsáveis por isso, Tyler Perry é o menor.
Na trama adaptada por Marc Moss e Kerry Williamson a partir do livro Eu, Alex Cross - publicado no Brasil em 2011 - o detetive de homicídios vai atrás de um matador de aluguel, Michael Sullivan (Matthew Fox), conhecido como o Açougueiro de Sligo, que pode estar por trás de assassinatos de figurões em Detroit. Depois de um tumultuado primeiro encontro entre o herói e o bandido, o acerto se torna pessoal.
Moss e Williamson respondem pelos primeiros sorrisos: o volume de platitudes, perguntas retóricas e situações descabidas em A Sombra do Inimigo. Filmes policiais nasceram como gênero B e ninguém espera deles o peso dos diálogos de Shakespeare, mas não tem como ouvir sem rir - uma autodefesa mesmo - as discussões entre Perry e seu parceiro Tommy (Edward Burns), como a hora em que eles inspecionam uma cena de crime inteira, cheia de minúcias, para depois Tommy soltar que "quer dizer que provavelmente estamos lidando com um profissional aqui".
Como Cross é doutor diplomado em psicologia, isso permite, além das platitudes, ótimos monólogos de reflexão em que Perry solta diagnósticos prontos da mente perturbada de seus suspeitos. Junte com os dois piores clichês dos thrillers psicológicos - as pistas em forma de quebra-cabeça e o laço criador-criatura entre detetive e homicida - e temos aqui uma oferta bastante diversa de alívios cômicos. Sem ficar listando momentos, digamos apenas que Cross descobre uma pista dobrando uma folha ao meio, como aquelas terceiras capas da revista Mad, e que um dos bandidos confessa seus crimes via Skype.
O cronicamente inepto Rob Cohen (Triplo X, A Múmia 3) contribui sobremaneira na direção, menos pela ação do que pela forma como ele - com a ajuda do seu elenco e de seus roteiristas - caracteriza os personagens. A ideia de A Sombra do Inimigo é fazer uma inversão dos estereótipos clássicos de buddy movies e blaxploitations - em que o negro sempre é o destemperado ou o tagarela - e apresentar Alex Cross como o cara equilibrado e cerebral. A princípio, é uma ideia muito bem-vinda. Só que, para renegar esse clichê, Cohen transforma Alex Cross no estereótipo oposto, um coxinha que joga xadrez (ele é muito inteligente) e mora num comercial de margarina.
O estereótipo economizado com Cross recai todo sobre os coadjuvantes. Como parceiro e ajudante, o pobre Ed Burns faz as vezes do tagarela destemperado ("Preciso que você se acalme, Tommy", diz Cross) e às demais etnias cabem seus pré-conceitos consagrados - asiáticos são mafiosos, franceses são pedantes, alemães são rigorosos ("Somos todos aqui ex-policiais da Alemanha", diz um deles para deixar claro).
Obviamente, o ponto alto da (des)caracterização é a performance de Matthew Fox, o doutor Jack de Lost, que faz aqui um sádico-masoquista bombado de passado misterioso. Tudo indica que ele foi abandonado pela mãe e criado por mímicos, porque o Açougueiro de Sligo é uma versão exagerada daqueles maníacos frios de movimentos calculados e caretas de agonia e espanto. Dá pra saber que A Sombra do Inimigo se leva bem a sério porque em certa cena Fox discursa contra as pseudo-análises de Cross olhando direto pra câmera, num flerte com a quarta parede que torna este filme um estudo de caso ainda mais intrigante.
Tem gente que diz que não existe filme "tão ruim que fica bom", apenas filmes ruins que as pessoas não assumem que curtiram. Bem, eu assumo que me diverti com A Sombra do Inimigo, primeiro porque não paguei um centavo para assisti-lo, segundo porque rir da seriedade alheia é a maior terapia.
A Sombra do Inimigo | Trailer legendado
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