A maioria das pessoas no planeta conhece Stan Lee como aquele velhinho de óculos escuros que aparecia em todos os filmes da Marvel. Quem é fã, no entanto, sabe muito bem o peso daquela figura. Pessoalmente, eu o conheci nos créditos dos gibis que li, quadrinhos estes que são a base que sustenta boa parte das bilheterias bilionárias de Hollywood - e incontáveis produtos licenciados mundo afora.
Sobre esse fenômeno Lee tem culpa, ou melhor duas culpas: a de ter sido um pilar da gênese desse sucesso e a de não ter feito mais por quem esteve ao seu lado no início de tudo. Lee coleciona adjetivos, muitos deles cunhados por ele próprio (como “The Man”), mas no imaginário popular ele é o “criador” ou o “pai da Marvel”. Um evento canônico por si só. E o documentário biográfico da Disney +, Stan Lee, não poupa esforços para sacramentá-lo nesse sentido. Mas em um certo ponto, até para quem não conhece o que historiadores e artistas sabem há décadas, uma verdade incômoda assombra essa imagem positiva e inspiradora.
Mesmo não sendo um autor de super-heróis, admito sem vergonha nenhuma que me tornei quadrinista graças aos gibis da Marvel. Eles foram os meus verdadeiros “romances de formação” e contribuição importante no meu caráter. Com eles, cresci lendo histórias onde heróis se sacrificavam e se importavam com o próximo. Não foi o que encontrei no conteúdo desse documentário, feito a partir de recortes de declarações do próprio Lee.
O filme propõe uma celebração, mas me trouxe um amargor por sintetizar em 86 minutos uma vaidade forjada ao longo de décadas. Se você parar e analisar a iconografia do próprio Lee nas fotos e vídeos que ilustram a sua linha do tempo, verá a evolução de um protótipo de pacato pai de família, para o de um projeto de playboy (não aparece no documentário, mas ele até já posou “nu” coberto com um gibi), muito mais celebridade do que artista.
Na esmerada produção, as escolhas estéticas trazem carinho, idealizam momentos e lugares que ele viveu. Maquetes e bonecos recriam sua infância, juventude e o estúdio Marvel. Tudo em cores suaves e detalhes delicados. Uma visão idílica do começo de um sonho. Mas de todas as idealizações a mais fofa e irreal é a redação onde todos os artistas trabalhavam juntos. A narrativa é feita de uma colcha de retalhos de entrevistas de Lee. É sua perspectiva de sua trajetória de campeão, também narrada por ele em outras versões contraditórias dadas ao longo dos anos e da conveniência da situação. Apesar da fluidez dos acontecimentos, a egotrip do famoso editor e roteirista da Marvel dos anos 60 torna impossível esconder sua vaidade. A leitura mais atenta de suas frases deixa claro como ele se achava mais importante que os colegas.
Surpreendentemente, o doc até então “chapa-branca” chega até a arranhar assuntos nebulosos. Em certo ponto ele relembra, mesmo entre elogios, a conturbada relação com Steve Ditko, co-criador do Homem-Aranha. Lee fala que dava créditos e no fim não sabia o que mais Ditko queria quando foi embora e abandonou a série no auge. Na mesma sequência, Lee chega a dizer que a ideia é mesmo de quem sonha, não importa quem a desenhe. Será que ele não sabia mesmo a razão do descontentamento do parceiro criativo? Essa declaração fornece a pista.
O seu método de criação era dar uma sinopse rasa ao desenhista e bolar os textos a partir da história já desenhada. Ou seja, o desenhista desenvolvia enredos, conceitos, narrativa... O desenhista era tão ou mais ativo que ele no processo criativo. Ele não era um mero ilustrador, um funcionário, uma engrenagem numa máquina. Por trás do sedutor sorriso de Lee prevalece um conflito de classes. Conflito onde o patrão, seja Lee ou a diretoria da editora, tem a razão e o domínio sobre as criações de quadrinistas que geraram as bases de uma “mitologia” cada dia mais popular. Mas nem todo artista se sujeita a essa ótica industrial de criação. Ditko foi só um dos que pularam - ou “foram pulados” - fora do barco por não aceitar os rumos ditados pelo capitão.
Mas Lee, além de mediar os interesses da empresa com os artistas, também era um deles: um roteirista! Ele poderia ter sido o elo entre os dois mundos. Ele era ágil com as palavras, soube usar a mídia para construir seu alter ego promocional da editora. Tornou-se garoto propaganda indissociável da marca na proporção inversa do apagamento gradativo que seus pares tiveram. Preferiu ficar ao lado dos mais fortes. Lee de certa maneira habita um limbo entre Bob Kane, famoso por ter eclipsado Bill Finger na criação do Batman, e Walt Disney, cuja empresa hoje é dona da Marvel. De certa forma, este documentário é uma peça, a princípio feita para canonizar Stan Lee como o grande pai da Marvel. Mas, assim como Disney, ele não fez seu reino sozinho.
Talvez por isso, o ápice ou ponto de ruptura da narrativa é uma conversa entre ele e Jack Kirby, num programa de rádio. O que era para ser um reencontro para celebrar o aniversário de Kirby se torna uma discussão passiva agressiva com Lee se pondo como autor maior. Kirby, caso você não saiba, é cocriador absoluto da Marvel. Ditko tem os méritos sobre o Homem-Aranha e Dr. Estranho, cuja primeira HQ ele já levou pronta para Lee. Quem estava lá em 1961, quando tudo começou com a Marvel falindo, era Kirby, que era para ter sido o editor-chefe quando Lee deixou o posto nos anos 70 para ser executivo da empresa. Foi preterido por um assistente de Lee. É estranhamente a partir desta discussão dos ex-parceiros que a narrativa salta dos anos 1970 para 2010, ignorando os processos que Lee sofreu por direitos autorais, sua atuação como produtor de desenhos animados e filmes e, principalmente, suas outras iniciativas criativas fracassadas longe dos colegas de antigamente: Pow Entertaiment e a Stan Lee Media.
É como se faltasse um episódio completo e dramático de uma série porque alguém na Disney não gostou e cortou. Ou simplesmente porque questões judiciais não permitiram tocar nesses assuntos. Saltamos do vislumbre das intrigas palacianas no reino da Marvel direto para os tributos que ele recebeu quando alcançou o status de coadjuvante de luxo nas superproduções do MCU no cinema. Eis que tudo se encerra num belo discurso inspirador com Stan numa formatura, poucos anos antes de morrer envolto a problemas familiares e de abuso. Um documentário parcial, idealizado, mas ainda assim, incapaz de esconder algumas falhas na trajetória do mito que tenta canonizar. Falhou naquilo que Stan Lee tinha de melhor: a capacidade de construir uma narrativa ficcional.
Talvez para quem desconhece os bastidores, o que fica seja o discurso do senhor fofo, a mensagem de determinação e de superação. Mas aquele era um personagem que ele interpretou. Mas para além da superfície é importante entender que Lee era um homem de seu tempo, com falhas e contradições humanas. E méritos. Grandes méritos, mas que não justificam o apagamento do mérito, do crédito, do direito e do ganho de outros grandes artistas. Aqueles por quem ele deveria ter sido grato até o fim. Não com elogios, mas com atitudes. Diante de um microfone ou câmera ele até era capaz de falar bem deles. Mas diante da chefia ou do tribunal as coisas eram diferentes.
Lee foi importantíssimo para o fortalecimento e reconhecimento dos quadrinhos modernos. Isso é incontestável. Mas foi também alguém que não se importava de deixar esqueletos no armário, mesmo se fossem os dos gigantes em cujos ombros subiu para alcançar o estrelato. O documentário, não na voz de Lee, mas na de Kevin Feige, presidente do Marvel Studios, encerra dizendo que um sem o outro, Lee; Kirby e Ditko, não teriam sido capazes de criar a Marvel. É óbvio que esse não foi um esforço individual. Lee foi a cola que uniu por alguns anos algumas das mentes mais criativas do seu tempo. Mas será que sem o direcionamento dele eles não teriam tido a chance de se sobressair e rivalizar com o próprio? Não vale a pena especular. Dizer o que Lee nunca admitiu, após a morte de todos, é uma gambiarra, uma forma vazia de amenizar o tratamento desigual dado aos principais criadores da editora, e a vários outros que hoje lutam na justiça por seus direitos. O legado deles é maior que o ego de Lee, que ganhou grandes poderes e somas por ser o cara certo, na hora e no lugar exatos - mas não conseguiu ser tão grande quanto os heróis a quem deu voz.
Para saber mais sobre os bastidores das intrigas aqui comentadas recomendo a leitura de:
- Marvel Comics – A história Secreta (Ed. Leya), de Sean Howe.
- Jack Kirby: A épica biografia do rei dos quadrinhos (Ed. Conrad), de Tom Scioli.
- Jack Kirby: o Criador de Deuses e O Incrível Ditko (Ed. Noir), de Renato Guedes.
José Aguiar @quadrinhofilia é mestre em mediações e cultura. Quadrinista premiado e finalista de prêmios como Jabuti e em Angoulême. Autor de HQs como A Infância do Brasil e Debaixo D´água. Publica suas tiras Malu e Nada Com Coisa Alguma no jornal O Globo. Foi colunista do Omelete muitos anos atrás.