Amor de perdição é uma especialidade lusitana, mas a referência primeira de Tabu, o novo filme de Miguel Gomes, é uma produção hollywoodiana, o Tabu de F.W. Murnau e Robert Flaherty. O roteirista e diretor português aproveita o formato díptico do filme de 1931, sobre um pescador polinésio apaixonado por uma jovem comprometida, para inverter sua lógica: pega um clássico sobre o fim da inocência para repor o véu de inocência dos clássicos.
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A inversão é literal: se o Tabu de 1931 se dividia nos capítulos "Paraíso" e "Paraíso Perdido", o Tabu de 2012 começa com a perdição. Presenciamos os últimos dias de uma velha lisboeta falida, Aurora, que vive da ajuda de sua empregada negra e da boa vontade de sua esclarecida vizinha, Pilar. Aurora delira, fala de crocodilos e chama por um homem de nome Ventura. A vizinha descobre que o homem existe e está vivo. Ventura entra em cena para narrar, na segunda parte, "Paraíso", a história de amor proibido que viveu com Aurora décadas atrás, numa colônia portuguesa na África.
Naquela época, inocência era sinônimo de inculpabilidade. O filme volta a tempos mais simples para falar, melancolicamente, dos reflexos da colonização no espírito dos africanos e dos portugueses, a partir de uma tragédia amorosa que, como todo amor de perdição, não consegue dimensionar a consequência de seus atos. Se em seu longa anterior, Aquele Querido Mês de Agosto, Gomes usou o díptico para confundir documentário e ficção, em Tabu ele volta ao formato dos duplos para entender - numa escala geracional - a relação de causalidade que há entre a memória e a frustração.
Ao contrário dos sebastianistas, Gomes não tem ilusões com a história. O seu exercício de mimetização do cinema mudo serve não só como homenagem aos clássicos - Tabu tem uma das narrações mais bonitas de todos os tempos -, mas principalmente para reforçar, em oposição à corporeidade daqueles tempos "mais simples", a angústia de ver como hoje as imagens nos fogem. É como se tudo ao redor dos personagens fosse uma projeção enviesada de uma expectativa que não se cumpriu.
No passado, por exemplo, não precisamos ver ou mesmo ouvir o disparo da espingarda para acreditar que Aurora matou um búfalo na África. Já nos dias de hoje, a velha, que prefere a certeza de um quadro com paisagem a uma pintura modernista, reconta o seu relato no cassino enquanto o fundo não para de girar, como se fosse um fluxo de consciência apenas. Em outro momento, quando Aurora está no hospital, as luzes de Natal na parede atrás da vizinha e da empregada parecem obra de delírio. Num mundo que se sustenta em reminiscências, não chega a espantar que Ventura, para recontar sua aventura na África, precise sentar-se em um jardim.
Quando tudo é fugaz e ilusório, não há outro refúgio a não ser confiar no restabelecimento da imagem. A vizinha Pilar - que nas ruas de Lisboa vive em transe, repetindo palavras de ordem e acenando para uma juventude que a evita - decide passar o Ano Novo dentro do cinema. Lá, ela depara com uma fabulação bizarra, a história de um viúvo que, mesmo engolido por um crocodilo, não esquece a mulher amada. Não presenciamos o ato, só ouvimos o homem cair na água, mas em seguida vemos um crocodilo inerte, assombrado por uma morta. Acreditamos na história, por absurda que seja, porque é isso que a imagem nos diz.
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