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Crítica

Tár testa Cate Blanchett em exercício de ironia e alienação

Atriz chega à sua oitava indicação ao Oscar num filme que convida à dissociação

27.01.2023, às 12H29.

Das muitas ironias que Tár provoca, de propósito ou inconscientemente, talvez a maior é que seja um filme de uma nota só, ainda que lide com a rotina e o ofício dos melhores musicistas do mundo. O longa escrito e dirigido por Todd Field é um grande exercício de sarcasmo e alienação e o seu valor primeiro está na obstinação com que mantém esse registro monocórdio por duas horas e quarenta de duração.

À frente dos músicos está a personagem que empresta seu sobrenome ao filme, Lydia Tár (Cate Blanchett), maestrina da Filarmônica de Berlim que se prepara para gravar, com a orquestra, a desafiadora Quinta Sinfonia de Mahler. Os feitos de Lydia são elencados logo no começo do filme; são tão grandiloquentes, mas tratados com certa indiferença, que muitos espectadores recorrem ao Google depois da sessão para descobrir em quem Lydia se inspira secretamente no mundo real - o que já dá um indício do efeito alcançado por Field, de sensacionalismo e distanciamento.

A fofoca fica pela metade porque - não custa frisar - não há uma Lydia Tár na vida real. Nos meses que marcam a preparação para a Quinta de Mahler, acompanhamos Lydia na glória, na ruína e nas trivialidades da vida dos abençoados com talento, mérito e dinheiro. Ao mesmo tempo em que articula todo um discurso sobre fama, pedantismo, mídia e a cultura do cancelamento, Tár estimula no seu público os instintos mais pedestres de schadenfreude, direcionados não só a Lydia mas também àqueles que a orbitam. É a misantropia como uma envolvente sinfonia. 

O filme se constrói de modo muito efetivo nesse contraste entre a atração e a alienação: Field nos desafia a simpatizar com Lydia (que afinal é o ponto de vista em que nos afiançamos e Cate Blanchett está presente na grande maioria dos planos) mas a personagem é enquadrada pelos cantos ou em movimento, sempre fugidia, discutindo casos ou dando opiniões sobre pessoas e eventos passados que só dizem respeito aos personagens. O público se sente como se espiasse essas conversas, ainda que esteja acompanhando toda a intimidade de Lydia, e isso também turva a relação que o filme oferece ao espectador, de denunciar ou se render à fofoca. 

Todd Field consegue manipular essa relação e se manter relativamente alheio a ela na maior parte do tempo, mesmo quando suas ironias sobem o tom e se confundem com antiintelectualismo. O momento em que Field se vê mais exposto é quando Tár precisa encaminhar para o clímax e encontrar para si uma acomodação de cinema de gênero: quando o drama testa clichês de suspense (os objetos que somem e se movem, os barulhos que Lydia ouve na madrugada) para demarcar melhor o arco da personagem. Nesses momentos, Tár já usou seu arsenal de discurso e por fim se revela: um filme organizado em cima de provocações cuja dramaturgia meio frágil talvez não lhe esteja à altura ou justifique considerações tão categóricas sobre a miséria humana.

Tudo isso só consegue parar de pé no fim por causa de Cate Blanchett. É ela quem atribui ao filme a consistência necessária, de acreditar cegamente em si e de dar tudo o que tem, mesmo condicionada a uma narrativa irônica planejada para desarmar e denunciar a cada minuto as hipocrisias da personagem. É como se Blanchett operasse numa frequência de veracidade absolutamente desassociada do filme em si, atuação pura e simples, libertada de contextos ou amarras. Na sua oitava indicação ao Oscar, ela chega como favorita da mesma forma que Tom Hanks chegou em 1995 com Forrest Gump; Lydia Tár também oferece à atriz uma personagem à beira do diagnóstico de autismo, cuja existência parece mesmo prescindir do filme, e apesar do filme. Oferecer às pessoas uma sessão de capricho e virtuose sob o pretexto de fazer um estudo de personagem é o truque que Tár aplica bravamente até o fim.

 

 
Nota do Crítico
Bom