Já que foram questionar Martin Scorsese sobre os filmes da Marvel, podiam agora perguntar o que ele acha de ser homenageado pelos filmes da DC. Coringa (2019) de Todd Phillips reedita O Rei da Comédia (1982) de Scorsese, e agora The Batman de Matt Reeves parafraseia Taxi Driver (1976). Incógnito, Bruce Wayne circula à noite na chuva com sua moto reclamando em off do estado de Gotham City, com o mesmo ranço com que o protofascista Travis Bickle pedia “uma chuva de verdade para lavar embora toda a escória das ruas”.
Trata-se da primeira cena de Robert Pattinson no papel, neste filme que reapresenta o personagem em seu “Ano 2” de carreira; o Batman já tem a confiança do tenente James Gordon (Jeffrey Wright) mas visivelmente é o órfão crescido que aderiu ao vigilantismo para ventilar seus ressentimentos. Qual é a consequência de começar uma história evocando Taxi Driver, talvez o filme americano mais famoso a transitar problematicamente na linha fina entre acusar o reacionarismo e abraçá-lo? É um gesto muito forte da parte de Reeves, uma moldura ideológica que o filme impõe para si e que vai defini-lo até o desfecho, quase três horas depois.
O preço que o roteirista e diretor paga por essa escolha é que tudo no filme se mobiliza em função do discurso. Reeves está fazendo aqui menos um noir investigativo do que um simulacro de noir, onde tudo se ordena de acordo com a meta imposta de despertar Bruce Wayne para uma renovada consciência política. Vilão principal numa trama que parece reencenar a HQ O Longo Dia das Bruxas (1996) numa chave de suspense de serial killer, como O Silêncio dos Inocentes (1991) e Seven (1995), o Charada surge também instrumentalizado pelo comentário sobre o neofascismo.
Matt Reeves não está sendo exatamente inovador nesse sentido, ao aproveitar tropos de um ou dois gêneros “adultos” para tornar mais impactante e sisuda uma narrativa de universo fantasioso. Nessa estratégia ele foi precedido não por Scorsese, nem David Fincher, mas sim por Christopher Nolan, cujo O Cavaleiro das Trevas (2008) ganhou a fama de transcender o gênero das adaptações de quadrinhos ao se reenquadrar como um filme policial inspirado pelo venerado Fogo Contra Fogo (1995).
The Batman tem problemas parecidos com os de O Cavaleiro das Trevas, ambos filmes que escolhem seus gêneros por empréstimo e, flagrados nessa ousadia, precisam recorrer a uma rotina intensa de reviravoltas para compensar. As trocas expositivas entre Batman e Gordon tornam a investigação menos empolgante no miolo do filme do que ele parece crer. A desvantagem diante de Matt Reeves - um cineasta muito bom de conceber seus universos visualmente, mas menos desenvolto como autor de alguns roteiros bastante literais - é que fica muito difícil fazer um noir de fato surpreendente quando o espectador está sempre um passo à frente do protagonista.
O ranger do couro
Se Bruce Wayne tivesse assistido a Chinatown (1974), ele não apenas teria informações privilegiadas sobre potenciais situações de incesto (uma sugestão que The Batman faz sutilmente) como também saberia que todo noir que se preza envolve segredos proibidos do passado. Tudo é segredo, na verdade, e tudo é proibido. O noir leva esse nome (“escuro”, em francês) porque não se faz um filme policial desse gênero sem considerar que nele a sombra é a norma da condição humana, e não a luz.
Felizmente Matt Reeves tem essa noção e, conceitualmente, organiza todo o filme a partir disso. The Batman pode não ser um noir decente do ponto de vista das surpresas mas é, sim, um noir muito oportuno para reabilitar a pulsão do proibido - em muitas das suas expressões, na violência, no voyeurismo, na pulsão do sexo - em um gênero higienizado como o dos super-heróis no século XXI. Parece óbvio esperar isso de um filme do Batman mas a verdade é que em 2022 o sarrafo hollywoodiano não está lá muito alto.
Não se pode desprezar a responsabilidade de Zoë Kravitz nesse quesito. Os melhores momentos de The Batman envolvem sua Mulher-Gato porque ela é a manifestação bem definida de um jogo sensual de desvelamento que a câmera de Reeves está sempre propondo com o espectador. Não é por acaso que o filme abre com um plano de voyeurismo, uma perspectiva em primeira-pessoa com um binóculo: o proibido se apresenta para nós logo de partida, e está sempre numa negociação com o olhar. A relação entre Batman e a Mulher-Gato se sacramenta na forte cena da infiltração do clube porque é ali que o olhar dos dois se torna um só, literalmente.
Se assumirmos que é preciso desafiar o secreto e o proibido para conquistar um ponto de vista em The Batman, então não parece surpresa que o verdadeiro astro do filme seja Gotham City. Tudo é escuro e os pontos de luz parecem surgir no acidente, efeito colateral dos neons. A cena de perseguição do Bat-Móvel contra o Pinguim (Colin Farrell) é toda sustentada em trucagens de luz e desfoques. A decisão de filmar na operária Liverpool e na gótica Glasgow dá à cidade uma textura muito particular, primitiva, impressa nas pedras e no asfalto molhado, e quando Bruce e Selina andam juntos de moto (um plano longo no final ressalta especialmente o trajeto sinuoso e sensual) é como se a cidade cedesse na hostilidade e se abrisse para os dois, que conquistam Gotham à força da máquina.
O espaço embrutecido exige que ele seja aberto à força. Com frequência a câmera se coloca atrás de janelas e vidros embaçados, ou em movimentos com paredes que bloqueiam nossa visão. Em um filme de investigação que precisa proteger sua aura de mistério, é natural que Gotham se apresente desse jeito para nós, resistente, mas ainda assim o cuidado com o táctil e com as texturas (trabalho completado no excelente design de som) é bem impressionante. Isso se estende ao uniforme do Batman, cujo peso da bota e o ranger constante do couro nunca nos deixam esquecer que ele é uma anomalia entre os homens, uma figura que não cabe nas salas apertadas onde circula.
Este The Batman está longe de reivindicar para si uma brincadeira de fetiche como faziam os filmes de Tim Burton ou Joel Schumacher, mas isso não impede que Matt Reeves entenda e utilize alguns códigos do kinky (especificamente o fetiche sadomasoquista) a seu favor: o voyeurismo constante se completa com o couro que não para de ranger, e quando Batman sufoca a Mulher-Gato contra a parede se torna difícil para o próprio espectador não se sentir, ele mesmo, um voyeur na penumbra.
Como o diretor nunca deixa escapar do seu recado político a aproximação que ele faz entre o vigilante e o maníaco, o Batman troca também com o Charada seus olhares e suas pulsões. Perspectivas e comportamentos do Charada se vêem espelhados no Batman e vice-versa; até a lata de spray branca que os vagabundos usam para pixar os muros é reutilizada por Bruce Wayne depois em outro contexto. Há muito de astúcia aí, de bons achados visuais, na sugestão de que Batman está a um passo de se tornar seu inimigo, o Travis Bickle de Gotham, dependendo do ângulo que se olha, mas há também muito de cálculo, do texto superescrito. No fim Matt Reeves tenta se equilibrar entre os dois, num filme que parece inchado de ideias e de muitas outras coisas, inclusive de um ímpeto por recuperar um olhar instigante que por algum motivo havia se perdido.