Filmes

Crítica

The Flash encara a crise de frente e com bom humor

Filme se olha no espelho e reabilita a natureza cartunesca das narrativas de super-herói

07.06.2023, às 13H56.
Atualizada em 15.06.2023, ÀS 12H02

Estamos calvos de saber sobre viagem no tempo e multiverso, então agora os filmes já permitem passar para a aula número dois de física quântica. Em The Flash, um personagem usa espaguetes para ilustrar que, como o tempo não é linear, desvios de uma determinada linha temporal afetam não apenas o futuro mas também o passado. (Se um dia cometerem mesmo um remake de De Volta para o Futuro, toda a premissa do Paradoxo do Avô já poderia se atualizar com essa informação.) 

A questão é que a cena obrigatória do “minuto da ciência” em The Flash não se resume a fazer a exposição de um jeito didático. Depois de aprendermos sobre o espaço-tempo com os espaguetes cruzados, ainda vem a demonstração, com respingos de molho de tomate, de como a irresponsabilidade de Barry Allen coloca em risco todo o universo, risco esse que não impede o personagem de atacar a macarronada empratada, com barulho e voragem. O que começou como despejo de informação vira sacadinha de metalinguagem, para então concluir com uma punchline de cartum.

Essa gradação de humor pode parecer uma coisa trivial, mas a cena do espaguete é ilustrativa de como The Flash leva a sério sua comédia. Todo o ótimo segundo ato, em que Ezra Miller interpreta dois Barry Allens do presente e do passado se conhecendo (o que torna The Flash tanto uma continuação esperada do Snyderverso quanto um filme de origem, fundacional de um novo tom, mais cartunesco), traz ecos de Billy Wilder e Sam Raimi na sua dinâmica caótica de dupla desengonçada. Miller encara essa proposta com o mesmo comprometimento que Robert Downey Jr. demonstrou no início do MCU: ciente de que a natureza das histórias de super-herói é cartunesca em essência, e que traduzir isso em cena depende de uma atuação acima de tudo performática.

Se nos filmes da Marvel em geral o humor se tornou uma ferramenta de escape, para desarmar a gravidade de situações dramáticas que do contrário talvez parecessem definitivas demais (não por acaso a ironia e um certo descompromisso se tornam a norma na era de Taika Waititi e James Gunn para lidar com a fadiga do gênero), em The Flash o humor é o alicerce da dramaturgia toda. Faz sentido que seja assim, afinal estamos lidando com um personagem em luto (um jovem adulto que sequer tem o privilégio de ser o único órfão traumatizado em cena) em busca da sua infância perdida. Enquanto um filme como Shazam! trata a infância como análoga à imaturidade, The Flash vê na inocência roubada a razão de uma vida adulta neurótica, partida.

Daí que The Flash talvez seja um filme com uma missão nada modesta, de raiz ontológica: atravessar e dissipar o nevoeiro cinza do cinismo que dominou o gênero nessa era da produção em massa, e que tirou da fabulação infantil o caráter do extraordinário. Ao mesmo tempo em que cede às concessões do mercado (resgatar as criações de Tim Burton é um golpe especialmente baixo para engatilhar a nostalgia de quem tomava em 1989 um primeiro contato com super-heróis de carne e osso na tela), The Flash combate o cinismo e toma esse resgate como a sua verdade maior. Então parece apenas apropriado que o filme reivindique para si o cartunesco, não apenas nas piadas e na performance de Miller mas também nas soluções visuais da fantasia (o cenário da Força de Aceleração presta indiretamente uma bonita homenagem ao recém-falecido George Pérez).

Através do espelho

Não é a primeira vez que eu começo uma crítica falando sobre o “minuto da ciência”, já havia feito isso em Tenet, e sou o primeiro a reconhecer a repetição. A história se repete de muitas formas; no exemplo de The Flash e do diretor Andy Muschietti, como já havia sido o caso com Sam Raimi na virada do milênio, foi preciso buscar no cinema de horror um nome capaz de desarmar a sisudez dos blockbusters para lhes devolver uma energia mais lúdica (do seu IT - A Coisa, Muschietti reaproveita aqui os muitos ângulos de contra-plongée que respondem por agigantar figuras, ressaltar caricaturas, renovar sensos de ameaça).

A questão - como aprendem Barry Allen, Homem-Aranha e todo super-herói preso em narrativas de multiverso - é que parece difícil vislumbrar um futuro no gênero hoje para além da repetição e do eterno recomeço. As histórias de viagem no tempo e realidades paralelas se tornaram axiomáticas do filme de super-herói, como ocorreu nos quadrinhos nos anos 1980, e isso obviamente gera desgastes além da já falada fadiga do gênero. Um dos efeitos é que a figura do vilão nesses filmes, pouco mais do que funcional na maioria dos casos, agora se torna quase ociosa. Vale lembrar que o Homem-Aranha de Tom Holland cisma, em Sem Volta para Casa, que sua missão é tornar os vilões boas pessoas - ou seja, dar a esses personagens um novo sentido de existir, dada a obsolescência da profissão de vilão. 

Através do Aranhaverso reage a essa constatação com humor, fazendo do vilão Mancha - escolhido tanto pela funcionalidade do seu poder quanto pelo ridículo - pouco mais que um inconveniente nas poucas cenas em que ele aparece. Em The Flash, a opção é por exacerbar o efeito Dia da Marmota e esvaziar de autonomia o vilão e os coadjuvantes; em outras palavras, lida-se com a máquina, a própria repetição. Muschietti não está realizando um filme-ensaio literalmente como No Limite do Amanhã, mas essas escolhas em The Flash pelo menos dão à obrigatória pancadaria do terceiro ato um caráter renovado, de comentário. Não por acaso, os melhores momentos do filme envolvem o Flash respondendo meio desesperado, de modo metalinguístico, às próprias exigências do roteiro (como quando ele estica o braço e faz sua melhor imitação de Doc Brown para olhar o relógio e lembrar do horário em que o relâmpago cairá).

Não é a primeira vez que a roteirista de The Flash, Christina Hodson, contrabandeia para dentro da trama esses comentários sobre a própria natureza dos esquemas; em Aves de Rapina, a batalha contra o Máscara Negra só ganha estatura de fato porque o vilão se desenha como avatar de um tipo de personagem hegemônico nessas narrativas masculinizadas; de novo, combate-se a máquina. De qualquer forma, se aproximar do gênero com um olhar revisionista ou já neoclassicista parece ser a única solução criativa para o ciclo da repetição. Tanto The Flash quanto Através do Aranhaverso atacam o problema existencial frontalmente: o segundo, como um caleidoscópio; o primeiro, como um simples espelho.

O que traz de volta à figura de Ezra Miller, que afinal está personificando, duplicade diante de si e confundindo-se demais com sua controversa figura pública, essa crise de autoimagem que o gênero como um todo atravessa. O espelho é a ideia central aqui, elemento incorporado a The Flash não com simbolismos tipo surto-no-espelho-do-banheiro mas sim no próprio corpo do filme, na caracterização cartunesca autoconsciente, na dinâmica cômica entre os dois Barry Allens, na jornada de amadurecimento que se dá pela alteridade. Devolver uma luz ao blockbuster sombrio e realista talvez seja missão demais para um filme só, mas The Flash no mínimo se esmera em buscar sentido para as coisas, muitas delas deformadas pelo tempo, a começar pela empatia. 

Nota do Crítico
Ótimo