Cena de The Humans (Reprodução)

Filmes

Crítica

The Humans busca esperança em meio ao teatro de horror do capitalismo

Stephen Karam faz filme de sensações vívidas, ainda que ansioso demais para agradar

16.08.2022, às 13H17.

Já não é novidade que filmes adaptados de peças teatrais apresentam um dilema complicado para os cineastas que escolhem abraçá-los. Pela própria natureza do formato, peças costumam ser limitadas a poucos cenários e personagens, focadas em diálogos e atuações muito mais do que em grandes set pieces facilmente traduzidas para uma obra cinematográfica que faça jus à linguagem da mídia. Ao invés de uma quarta parede “tombada”, pela qual o público pode espiar os personagens a uma distância pré-definida, o cinema te dá uma câmera que pode se mover livremente pelos cenários, ditando para onde o nosso olho deve passear.

Essa possibilidade de brincar com sons e imagens, de criar sensações com a câmera, nem sempre é abraçada pelas adaptações de peças para o cinema - vide filmes como Um Limite Entre Nós, muito mais próximos do teatro filmado, que preferem manter a integridade do texto e abrir espaço para os atores brilharem. The Humans segue um caminho oposto, o que surpreende um pouco quando consideramos que Stephen Karam, o diretor e roteirista do filme, é também o autor da peça original. Mas talvez seja a segurança de ser o dono do texto, de estar no controle de como ele será reproduzido, que o permita mergulhar tanto na linguagem cinematográfica.

A premissa é simples: Brigid (Beanie Feldstein) convida a família para passar o Dia de Ação de Graças em seu novo apartamento, um duplex caindo aos pedaços e ainda sem mobília em um bairro suspeito de Nova York. Os problemas dela e do namorado Rich (Steven Yeun), dos pais Erik (Richard Jenkins) e Deirdre (Jayne Houdyshell), assim como os da irmã Aimee (Amy Schumer) e os da avó Momo (June Squibb), vão se desenrolando através da tarde e da noite, desvelando as angústias de uma família de classe média baixa tentando enfrentar a precariedade do capitalismo contemporâneo e a realidade dos relacionamentos desgastados pelo tempo e pelo estresse da sobrevivência.

Nas sutilezas, no entanto, The Humans é realmente um filme de terror. A começar pelo trabalho do designer de produção David Gropman, que cria uma casa mal-assombrada das mais diabólicas, completa com iluminação vacilante, paredes distorcidas em formas quase-humanas, janelas que nunca se fecham completamente e quadros antigos retratando figuras misteriosas. O diretor de fotografia Lol Crawley realça o desconforto ao insistir no enquadramento dos personagens dentro dos limites desse cenário - com raras exceções, eles sempre são vistos através da moldura das paredes, portas, vidros e corredores do apartamento. 

O filme também trabalha bem com as sombras, escurecendo os espaços vazios do cenário de forma inquietante, e desfila um design de som expressivo, preenchendo suas 1h48 com uma cacofonia de ruídos infernais e imprevisíveis. Quando o terceiro ato chega, o espectador já se sente totalmente absorvido pelo mundo criado por The Humans, tanto que o frenesi paranoico que marca os últimos minutos não parece despropositado ou puramente alegórico. Existe, é tangível, o medo que algum dos monstros ou delírios citados nos diálogos do filme se solidifique repentinamente em algum canto da tela, pronto para devorar os personagens.

Tudo isso funciona a favor das sensações que The Humans quer passar, é claro, mas é difícil fugir do sentimento de que este é um filme quase totalmente consumido pela necessidade de se provar como tal. É cruelmente irônico: na tentativa de expressar, com a assistência das ferramentas cinematográficas, todas sutilezas de um texto rico, autêntico e urgente que conhece melhor do que ninguém, o diretor e roteirista Stephen Karam cede à tentação do maximalismo e arrisca sufocar a dramaturgia potente que ele mesmo criou.

Não há nada de errado com maximalismo ou formalismo (o recente Elvis de Baz Luhrmann é prova), mas o cineasta que os escolhe sempre arrisca perder o timing do momento em que precisa tomar uma posição mais coadjuvante, abrindo espaço para as palavras - e os atores recitando-as - se conectarem com o público. Essa é a medida que o claramente talentosíssimo Karam, ainda em seu primeiro longa-metragem, não conseguiu calibrar à perfeição aqui.

É uma reclamação que chega a ser mesquinha, talvez, diante das qualidades de The Humans, mas é justamente pela grandeza do seu texto que fica o desejo de poder apreciá-lo melhor, sentí-lo por completo. O trabalho extraordinariamente naturalista do elenco, integrado à perfeição com seu ritmo de conversa familiar, revela em momentos inesperados e ternos as angústias de cada personagem, de cada relação, que escapam pelas rachaduras da carcaça criada pelas amenidades do dia-a-dia. Richard Jenkins e Steven Yeun, particularmente aptos a essa dramaturgia fluida e palpável, mereciam mais holofotes do que a câmera rígida e obcecada de Karam é capaz de prover.

Brilha de qualquer forma, no entanto, um filme dedicado a comunicar dois sentimentos essencialmente universais: o de sufocamento por um sistema poderoso demais para ser desmontado por qualquer um de nós, e o de amparo e segurança irredutível que vem de estar cercado por aqueles que amamos. The Humans argumenta que ambos os sentimentos são capazes de consumir toda uma existência, e que um contamina e se confunde com o outro de maneira inevitável. A complexidade corajosa desse argumento é o que fica quando sobem os créditos - o resto é “só” cinema.

Nota do Crítico
Ótimo