Já não é novidade que filmes adaptados de peças teatrais apresentam um dilema complicado para os cineastas que escolhem abraçá-los. Pela própria natureza do formato, peças costumam ser limitadas a poucos cenários e personagens, focadas em diálogos e atuações muito mais do que em grandes set pieces facilmente traduzidas para uma obra cinematográfica que faça jus à linguagem da mídia. Ao invés de uma quarta parede “tombada”, pela qual o público pode espiar os personagens a uma distância pré-definida, o cinema te dá uma câmera que pode se mover livremente pelos cenários, ditando para onde o nosso olho deve passear.
Essa possibilidade de brincar com sons e imagens, de criar sensações com a câmera, nem sempre é abraçada pelas adaptações de peças para o cinema - vide filmes como Um Limite Entre Nós, muito mais próximos do teatro filmado, que preferem manter a integridade do texto e abrir espaço para os atores brilharem. The Humans segue um caminho oposto, o que surpreende um pouco quando consideramos que Stephen Karam, o diretor e roteirista do filme, é também o autor da peça original. Mas talvez seja a segurança de ser o dono do texto, de estar no controle de como ele será reproduzido, que o permita mergulhar tanto na linguagem cinematográfica.
A premissa é simples: Brigid (Beanie Feldstein) convida a família para passar o Dia de Ação de Graças em seu novo apartamento, um duplex caindo aos pedaços e ainda sem mobília em um bairro suspeito de Nova York. Os problemas dela e do namorado Rich (Steven Yeun), dos pais Erik (Richard Jenkins) e Deirdre (Jayne Houdyshell), assim como os da irmã Aimee (Amy Schumer) e os da avó Momo (June Squibb), vão se desenrolando através da tarde e da noite, desvelando as angústias de uma família de classe média baixa tentando enfrentar a precariedade do capitalismo contemporâneo e a realidade dos relacionamentos desgastados pelo tempo e pelo estresse da sobrevivência.
Nas sutilezas, no entanto, The Humans é realmente um filme de terror. A começar pelo trabalho do designer de produção David Gropman, que cria uma casa mal-assombrada das mais diabólicas, completa com iluminação vacilante, paredes distorcidas em formas quase-humanas, janelas que nunca se fecham completamente e quadros antigos retratando figuras misteriosas. O diretor de fotografia Lol Crawley realça o desconforto ao insistir no enquadramento dos personagens dentro dos limites desse cenário - com raras exceções, eles sempre são vistos através da moldura das paredes, portas, vidros e corredores do apartamento.
O filme também trabalha bem com as sombras, escurecendo os espaços vazios do cenário de forma inquietante, e desfila um design de som expressivo, preenchendo suas 1h48 com uma cacofonia de ruídos infernais e imprevisíveis. Quando o terceiro ato chega, o espectador já se sente totalmente absorvido pelo mundo criado por The Humans, tanto que o frenesi paranoico que marca os últimos minutos não parece despropositado ou puramente alegórico. Existe, é tangível, o medo que algum dos monstros ou delírios citados nos diálogos do filme se solidifique repentinamente em algum canto da tela, pronto para devorar os personagens.
Tudo isso funciona a favor das sensações que The Humans quer passar, é claro, mas é difícil fugir do sentimento de que este é um filme quase totalmente consumido pela necessidade de se provar como tal. É cruelmente irônico: na tentativa de expressar, com a assistência das ferramentas cinematográficas, todas sutilezas de um texto rico, autêntico e urgente que conhece melhor do que ninguém, o diretor e roteirista Stephen Karam cede à tentação do maximalismo e arrisca sufocar a dramaturgia potente que ele mesmo criou.
Não há nada de errado com maximalismo ou formalismo (o recente Elvis de Baz Luhrmann é prova), mas o cineasta que os escolhe sempre arrisca perder o timing do momento em que precisa tomar uma posição mais coadjuvante, abrindo espaço para as palavras - e os atores recitando-as - se conectarem com o público. Essa é a medida que o claramente talentosíssimo Karam, ainda em seu primeiro longa-metragem, não conseguiu calibrar à perfeição aqui.
É uma reclamação que chega a ser mesquinha, talvez, diante das qualidades de The Humans, mas é justamente pela grandeza do seu texto que fica o desejo de poder apreciá-lo melhor, sentí-lo por completo. O trabalho extraordinariamente naturalista do elenco, integrado à perfeição com seu ritmo de conversa familiar, revela em momentos inesperados e ternos as angústias de cada personagem, de cada relação, que escapam pelas rachaduras da carcaça criada pelas amenidades do dia-a-dia. Richard Jenkins e Steven Yeun, particularmente aptos a essa dramaturgia fluida e palpável, mereciam mais holofotes do que a câmera rígida e obcecada de Karam é capaz de prover.
Brilha de qualquer forma, no entanto, um filme dedicado a comunicar dois sentimentos essencialmente universais: o de sufocamento por um sistema poderoso demais para ser desmontado por qualquer um de nós, e o de amparo e segurança irredutível que vem de estar cercado por aqueles que amamos. The Humans argumenta que ambos os sentimentos são capazes de consumir toda uma existência, e que um contamina e se confunde com o outro de maneira inevitável. A complexidade corajosa desse argumento é o que fica quando sobem os créditos - o resto é “só” cinema.