Cena de The Shrouds (Reprodução)

Filmes

Crítica

The Shrouds é decente como filme-terapia, mas terrível como mistério

Cronenberg aborda luto através do corpo (é claro) em seu novo filme

21.05.2024, às 14H33.

Imagine um filme de David Cronenberg sobre o além-vida, e você provavelmente está imaginando algo muito parecido com The Shrouds. Embora possa parecer um tanto incompreensível que o venerado cineasta canadense, que passou toda uma carreira obcecado com as verdades e perversões do corpo humano, se interesse agora pelo que acontece quando deixamos os nossos corpos, o filme que estreou no Festival de Cannes 2024 responde essa perplexidade de forma direta, já nos primeiros minutos - e faz isso "tranquilizando” o espectador de que, mesmo quando se trata de morte, luto e decomposição, o que mais importa para Cronenberg é o corpo.

Na ótima cena inicial de The Shrouds, o protagonista Karsh (Vincent Cassel, que fica a cara do seu diretor com o cabelo grisalho puxado para trás e as roupas pretas) está em um encontro romântico em um restaurante quando a conversa se volta para a sua falecida esposa, e para o fato de que o cadáver dela está metido em um túmulo tecnológico que o próprio Karsh inventou, que o permite observar, em tempo real, a decomposição do corpo de sua amada. Vale lembrar que o próprio Cronenberg se tornou viúvo em 2017, após um matrimônio de quase três décadas com a montadora Carolyn Zeifman, o que significa que entender The Shrouds como autobiografia, ou ao menos autoficção, não é um pulo tão grande assim.

E até que, quando se concentra nessa dimensão de sua narrativa, o filme tem ideias bastante interessantes. Por exemplo: quando Karsh encontra na ex-cunhada, Terry (Diane Kruger), uma amizade reconfortante baseada em teorias de conspiração que ele primeiro só entretém com um sorriso sarcástico, mas depois abraça com entusiasmo, Cronenberg desvela o apelo simplista do conspiracionismo como forma de prover todas as respostas para um mundo caótico e, muitas vezes, sem sentido. Esse apelo, é claro, nunca é mais forte do que para o homem ou a mulher em luto, precisando lidar com a crueldade aleatória de uma doença, um acidente, um ato de violência, que lhe tirou uma parte tão importante de sua vida.

Também há uma dor muito real em The Shrouds quando ele mergulha nessa sua vocação de filme-terapia. Cassel, inclusive, nunca está melhor do que nas cenas de sonho que Cronenberg insere no filme, quando se permite expressar a perda dilacerante que o personagem sente através da metáfora da mulher, Becca (Diane Kruger de novo), que entra e sai do quarto do casal com mais e mais partes do corpo faltando. A privação do toque, da vivência em um corpo que um dia lhe foi tão íntimo, tão quintessencial, tão inextricável do seu próprio - está tudo ali, e The Shrouds, no melhor estilo Cronenberg, não é um filme do tipo que vira o olhar com medo dos sentimentos que pode levantar.

Acontece que o longa não se contenta em ser essa terapia, essa tribulação em formato de cinema pelas mãos de um artesão tão audacioso. Ele quer também ser um mistério, por qualquer motivo que seja - ou talvez “querer” seja a palavra errada, tendo em vista o pouquíssimo esforço que Cronenberg coloca em estruturar e desenredar a trama detetivesca de The Shrouds. Sem paciência ou animação para nos embaraçar nas paranoias tecnológicas, ecológicas e psicológicas que compõem a intriga em torno da sabotagem nos cemitérios geridos pela empresa de Karsh, o roteiro se limita a enfileirar diálogos ultra explicativos e conversas telefônicas que matam qualquer impulso narrativo que ele possa ter demonstrado em outras áreas.

O resultado é um filme de mistério sem mistério, um quebra-cabeças que insiste em ser um quebra-cabeças só por teimosia, embora saiba muito bem que não empolga como tal e nem está empolgado para sê-lo. Para arrematar tudo isso, Cronenberg e seu diretor de fotografia Douglas Koch (o mesmo de Crimes do Futuro) usam uma paleta de cores fria, que passeia por superfícies impecáveis em uma encenação ligeiramente inadequada que quer aproximar o filme da ficção científica vagamente futurista, tipicamente canadense, que o próprio cineasta ajudou a definir, antes de ser cooptada pela televisão - pense Orphan Black ou Continuum

Aqui, o resultado sai mesmo muito mais ao televisivo do que ao cinematográfico, o que não seria um insulto em outros contextos. A diferença, no caso, é que séries de TV costumam investir um pouco mais em seus roteiros.

Nota do Crítico
Regular