No terceiro ato de The Surfer (prometo que o spoiler é leve!), Nicolas Cage enfia um rato morto dentro da boca de outro homem e grita, repetidamente: “Coma o rato! Coma o rato!”. Caso o filme, exibido no Festival de Cannes 2024, encontre distribuição ao redor do mundo e se torne o clássico cult que parece destinado a ser, o momento com certeza vai ser “memeado” ad aeternum nas redes sociais, adicionando mais uma explosão emblemática para a coleção aparentemente infindável de Cage. E não é que ele não mereça ou, a esse ponto, não queira cortejar essa fama dúbia da internet, mas o fato é que The Surfer tem muito mais a oferecer do que outro GIF icônico de seu astro para o arsenal dos fãs que ele conquistou nos últimos anos.
E olha só como as coisas se alinham: ao contrário do colega de festival Tipos de Gentileza, de Yorgos Lanthimos, The Surfer é um filme que encara a sua pequenez (poucos recursos, poucos cenários, poucos atores, nenhum efeito visual) como um desafio para fazer mais, e não uma oportunidade para fazer menos. A primeira chave está no roteiro, assinado por Thomas Martin (White Widow), que utiliza essa pequenez para direcionar a sua elaboração temática com mais precisão, desviando habilmente de subtextos equivocados que poderiam emergir de seus exageros situacionais. Quando tudo volta para um homem, em um lugar, lidando com um problema, o mundo ao nosso redor desse lado da tela meio que desaparece.
Na trama, o surfista sem nome do título (Cage) quer aproveitar uma tarde na praia com o filho adolescente (Finn Little), levando-o alguns dias antes do Natal até o litoral australiano onde passou sua infância, e onde agora pretende comprar uma casa para a família. Em seu caminho está um grupo barulhento e territorialista de surfistas locais, liderado por Scally (Julian McMahon, o Doutor Destino do Quarteto Fantástico dos anos 2000), e logo a briga entre os dois se transforma em uma odisseia surrealista esticada por dias e noites a fio, no decorrer dos quais o protagonista vai descendendo de homem de negócios bem-sucedido a indigente esquizofrênico com delírios de grandeza.
Cage, sempre mais disposto que outros atores a se colocar em posições constrangedoras ou degradantes em prol da hipérbole de seus personagens, é o homem perfeito para encarnar essa virada bizarra do filme. Mas, ainda assim, há algo de crível em seu pai divorciado desesperado por aprovação, por algo que valide o sucesso que ele passou a vida toda buscando - mesmo nos momentos em que o espectador se contorce todo na cadeira, implorando para que o personagem só ligue o seu carro e vá embora (enquanto ainda tem essa opção), Cage deixa claro o motivo pelo qual ele não faz isso. Na mente do surfista, é mais fácil passar por tudo isso do que admitir derrota, do que de-escalar um conflito, do que reavaliar a legitimidade de seus objetivos, o que realmente importa para ele.
O brilhantismo de The Surfer é elaborar essa inflexibilidade, essa teimosia, como uma parte da masculinidade que ele pretende retratar, parodiar, criticar - chamem como quiserem. Tanto é que o filme pinta o seu vilão com cores de influencer ou life coach masculinista, pregando a liberação agressiva dos “instintos animalescos” do homem diante de um mundo que cada vez mais exige que ele seja… ahm, civilizado? Responsável pelos seus atos? Um ser humano complexo o bastante para cumprir com suas obrigações, entender o lugar da fantasia na sua vida, e viver de forma respeitosa com os outros? E McMahon, com seus olhos azuis zombadores, seu sorrisinho de lado colado na cara desde a época de Nip/Tuck e seu cabelo raspado em V na nuca, é um daqueles antagonistas enfurecedoramente deliciosos de se assistir.
O diretor irlandês Lorcan Finnegan (Viveiro) é quem completa a receita vencedora de The Surfer, lançando mão da linguagem da comédia e do cinema lisérgico dos anos 60 e 70 para sugerir desconforto antes mesmo das situações mais extremas do roteiro mostrarem a cara. E dá-lhe zooms exagerados no rosto de seu protagonista, congelado em alguma expressão quase inadvertidamente grotesca, filtros de tremulação aquática que fazem parecer que o Sol à pino da tarde australiana está impregnado na tela, luzes neon fotografadas em alto contraste para sublinhar a sujeira da noite no calor infernal do litoral. Finnegan faz de The Surfer um filme nervoso, que vibra na mesma frequência da trilha sonora ondulante e paranoica de François Tétaz (Wolf Creek).
Eis aqui, enfim, um exemplar de cinema realizado com o gosto do artista que quer se expressar, e encontra as maneiras de fazê-lo dentro dos recursos que tem. The Surfer é inventivo, engraçado, visceralmente sentido e duramente observado, um pequeno milagre de modulação de expectativas e tom - e o maior triunfo cinematográfico, até agora, dessa fase de renascença de Cage.