Chloé Zhao ganhou o Oscar de direção. Jane Campion, o Leão de Prata em Veneza. Em Berlim, no mês passado, uma injustiça histórica foi corrigida e Claire Denis finalmente foi premiada como diretora num dos três grandes festivais de cinema europeus. Além desses prêmios para direção, os filmes vencedores de Cannes, Veneza, Berlim e no Oscar neste último ano foram todos realizados por mulheres.
Aos 38 anos, Julia Ducournau aparece nessa fotografia histórica com o seu Titane, um filme de duplo triunfo porque, além de ser dirigido por uma mulher, sua filiação primeira é com o cinema de gênero - especificamente o horror corporal, cujo histórico de subgênero classe B não o qualificaria normalmente para competir com os filmes de prestígio no Festival de Cannes, de onde Titane saiu em 2021 com o prêmio máximo, a Palma de Ouro. Antes dela, apenas Campion havia ganho a Palma de Ouro, num empate em 1993.
Acontece que Titane não é exatamente uma exceção do ponto de vista narrativo. Se assumirmos que Cannes tem uma predileção particular pelos filmes que pesam a mão no discurso de mal estar social, então Ducournau não difere tanto dos cineastas homens alçados ao renome pelo festival neste século, como Michael Haneke, Jacques Audiard, Ruben Östlund e Asghar Farhadi. A política do choque e a eventual misantropia, ambos disfarçados de sensibilidade e contundência, têm trânsito livre em Cannes.
Não é de espantar então que Titane se ofereça ao espectador como um filme em constante disputa de registros, indeciso entre abraçar o body horror e seus escapes ou almejar a seriedade blasé do cinema de lacunas. Começamos no terror: Alexia (Agathe Rousselle) sofre um acidente de carro quando criança e tem implantada no crânio uma chapa de titânio que a transforma numa homicida serial na vida adulta. Perseguida pela polícia, ela então se refugia com um bombeiro que vê em Alexia o filho dele desaparecido - uma situação que tem hora para terminar porque Alexia está grávida de um automóvel.
O culto dos carros como extensão do desejo marculino já foi bem documentado no cinema e dois mestres modernos do horror, John Carpenter e David Cronenberg, contribuíram com os filmes decisivos desse departamento: respectivamente, Christine (1983) e Crash - Estranhos Prazeres (1996). Ducournau assimila essa influência num contexto cultural em que o pornô se tornou fator determinante da paisagem do nosso desejo, e aproveita para remontar às origens do horror corporal, fazendo da sua Alexia uma Frankenstein de pouquíssimas palavras.
Rapidamente Titane cede, porém, à estratégia de uma articulação fugidia. Não é apenas Alexia que se recolhe em si; a própria narrativa escolhe ser bem lacônica, com cenas que já começam pela metade, priorizando elipses que aceleram as relações de causa e efeito. São escolhas absolutamente justificáveis - Ducournau sabe que tem na mão um material mínimo e ficar se dedicando à exposição ou à contextualização seria uma perda de tempo - e faz sentido apostar na perplexidade desses saltos, dada a premissa quase surreal.
O que acontece no filme, de qualquer modo, é que essa estratégia só evidencia as vagas certezas de Ducournau, que a priori chega muito segura dos signos que evoca e dos impactos que quer provocar, mas que na hora da encenação tem dificuldade em traduzir isso num conjunto que ganhe vida própria além das ideias. A dramaturgia de Titane é anêmica como a de Raw (2016), o filme de estreia da diretora francesa, que também tentava compensar a escassez narrativa com as catarses do cinema de horror.
É evidente que não faltam temas em Titane, comentários sobre machismo, daddy issues, tribalismo, pertencimento e objetificação. Mas os temas - unidos por um estado de espírito em comum, que é aquele mal estar social tão estimado em Cannes - chegam para o espectador tão autossuficientes nos instantes estilizados de Titane (o plano-sequência do evento de carros, as cenas de incêndio) que uma narrativa bem estruturada em si parece se tornar desnecessária. Já sabemos bem cedo o que o filme oferece e onde pode chegar, e então é só uma questão mórbida de esperar para ver que cara vai ter o bebê ao fim da gravidez.
Vale comparar o longa premiado em Cannes com outros horrores corporais mais consistentes do ponto de vista narrativo, como Sob a Pele (2013), um filme muito parecido com Titane nessa dança macabra de despersonalização, mas visivelmente superior. De resto, os sinais são muito claros e se repetem vez ou outra desde o ano de 1999, quando Bom Trabalho de Claire Denis zerou o potencial do corpo no cinema de fluxo: desconfie quando uma trama precisa recorrer no terceiro ato ou no desfecho a cenas catárticas de pista de dança, porque isso talvez seja apenas um atestado de falta do que dizer.