Dentre as marcas de nicho geek que foram absorvidas pelo mainstream hollywoodiano durante os anos 2000, Transformers (como Hellboy, Constantine e tantas outras) esteve entre aquelas que chegou aos cinemas distorcida pelas necessidades comerciais de um estúdio e pela sensibilidade comercial de um autor (no caso, Michael Bay) com suas próprias ideias do que deveria ser um blockbuster. Colossalmente bem-sucedida, a versão de Bay para Transformers gerou sua própria franquia, em filmes que seguiram no tom de espetáculo da destruição - e na ambientação terrestre - estabelecida pelo cineasta, ao invés de se aventurar pelos delírios mais fantasiosos, alienígenas e necessariamente nerds que foram a gênese da franquia, lá nos anos 1980, como uma linha de brinquedos dotada de mitologia progressiva e excessivamente complicada.
Foi preciso um desses filmes decepcionar nas bilheterias - no caso, Transformers: O Despertar das Feras (2023), com seus “míseros” US$ 438 milhões na arrecadação global - para o estúdio entreter a possibilidade de uma mudança de rumo. Transformers: O Início é o resultado feliz dessa troca de marcha, disfarçado de prelúdio dos longas de Bay para, no fim das contas, entregar uma completa reorganização da franquia cinematográfica em torno dos pilares que atraíram os fãs mais fiéis boas décadas atrás. Daí que temos uma variedade caleidoscópica de personagens robóticos, organizados em uma hierarquia complexa de clãs, que juntos formam o ecossistema social de um planeta completamente diverso do nosso, e por isso mesmo rico em material narrativo para ser minado.
Crédito para o trabalho de roteiro da dupla Andrew Barrer e Gabriel Ferrari (do ótimo, e pouco visto, suspense Sem Saída), assistida pela revisão de Eric Pearson (Thor: Ragnarok). Em Transformers: O Início, conhecer e entender os cenários de Cybertron, e os personagens que caminham por ele, é a atração principal - e a trama que se desenrola durante esse processo de ambientação parece uma consequência muito natural disso. Muito antes de serem Optimus Prime e Megatron, respectivamente, Orion Pax (voz de Chris Hemsworth) e D-16 (Brian Tyree Henry) são dois amigos inseparáveis, operários de baixo calão em um Cybertron em crise, que aos poucos vão descobrindo mentiras contadas a eles pelas autoridades do local, encarnadas no canastrão herói Sentinel Prime (Jon Hamm). Na busca da criação de um novo paradigma a partir da revelação dessas mentiras é que os dois amigos divergem, e o conflito que conhecemos vai se formando.
Quando chega nesse ponto da trama, Transformers: O Início já nos vendeu Orion e D-16 como os seus próprios Professor X e Magneto, reeditando com os robôs gigantes aquele velho (mas sempre eficiente) dilema da resistência pacífica contra a retaliação violenta. E não é que o filme vá muito fundo nesse dilema, que só virou arquetípico da cultura pop a partir de uma discussão social muito real, especialmente na luta pelos direitos civis de minorias que se intensificaram no século XX (os modelos para Xavier e Magneto foram famosamente os líderes ativistas Martin Luther King Jr. e Malcolm X). Transformers: O Início só está interessado em utilizar essa dinâmica em um nível muito superficial de entretenimento e construção mitológica - ao invés de discutir sobre métodos de revolução, o filme os retrata com alguma competência básica e deixa a discussão inteiramente por nossa conta, contando com que a base de fãs abrace a história.
E funciona, até porque Transformers (e isso até os filmes de Bay já tinham entendido, de certa forma) é mesmo uma narrativa de fabulação, de mitificação, de extrapolação de dinâmicas reais em uma tela na qual podemos nos esquecer de sua realidade e focar na minúcia do que há de mais irreal e sua premissa. É daí que vem o exagero mitológico: são carros que se transformam em robôs gigantes, sim, mas cada um desses carros tem seus próprios poderes, seus próprios seguidores, sua própria posição social e sua própria diáspora dentro da história de Cybertron. Quem vai pensar em Luther King e Malcolm X quando tem todos esses outros detalhes para se concentrar?
Ainda mais quando Transformers: O Início enche os olhos com uma animação eminentemente competente (o diretor Josh Cooley chega à franquia direto de um Oscar por Toy Story 4), um design criativo que mistura superfícies artificiais e naturais sem muita cerimônia, e de quebra diferencia os personagens - e as fases de cada personagem - com alterações sutis nas armaduras que vão ajudar a vender mais brinquedo, mas também atiçar a fanbase como nenhum dos filmes de Bay conseguiu. Tanto nesse nível estético quanto em um nível de discurso pop de superfície, portanto, O Início satisfaz - até mais como um recomeço do que como uma volta às origens.