Coerência é uma qualidade tremendamente superestimada, principalmente na arte. De fato, estamos tão viciados em procurá-la quando assistimos a um filme que nos acostumamos a exaltar a uniformidade radical de um MCU, ou o comprometimento irrestrito de um Liga da Justiça de Zack Snyder com as suas ideias mais básicas de identidade visual e narrativa. 4 horas (ou quase 30 filmes, com raras exceções) de consistência tonal, de linha narrativa intacta, parecem importar mais do que todas as possibilidades que passam inexploradas nessa busca eterna pela coerência.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo segue o caminho diretamente inverso. Como o próprio título indica, o filme dirigido pela dupla Daniels (Daniel Kwan e Daniel Scheinert) chega às telas encarnado na totalidade de seu potencial. Ele é tudo o que pode ser, e não parece encontrar idéia que considere absurda demais, boba demais ou “inapropriada” para a história que quer contar. De fato, Tudo em Todo o Lugar parece olhar o conceito de “apropriado” diretamente nos olhos e soltar uma sonora gargalhada, considerando-o tão inútil e arbitrário quanto a sua vilã Jobu Tupaki considera a existência humana.
Jobu não é a protagonista do filme, no entanto. Esse posto pertence a Evelyn Wang (Michelle Yeoh), uma mulher à beira de um ataque de nervos: dona de uma lavanderia que pode ir à falência a qualquer momento, especialmente se a auditora do imposto de renda Deirdre (Jamie Lee Curtis) decidir multar a família, ela também precisa lidar com uma crise no casamento com o gentil Waymond (Ke Huy Quan), e com a filha Joy (Stephanie Hsu), que gostaria de apresentar a namorada Becky (Tallie Medel) para o seu avô, pai de Evelyn, o linha-dura Gong Gong (James Hong).
Como se não bastassem todas essas crises, Evelyn ainda descobre, durante um dia especialmente estressante, a existência do multiverso. Contatada por uma versão alternativa do seu marido, ela é informada que precisa derrotar a entidade multiversal Jobu Tupaki, que pretende destruir todas as realidades. Tudo em Todo o Lugar é engenhoso em como permite a Evelyn acessar suas vidas alternativas sem fazer com que a narrativa central fuja das proporções permitidas pelo seu orçamento - grande parte da ação do filme todo se passa dentro de um prédio da receita federal, mas o longa ainda parece (e é) épico, expansivo, faminto para abraçar os mundos possíveis ao seu alcance.
Ainda mais impressionante é como o roteiro, também assinado pelos Daniels, faz cada um desses mundos possíveis ter a sua própria linha narrativa, e como eles conseguem costurar cada uma delas aos temas que fazem de Tudo em Todo o Lugar uma experiência cinematográfica tão recompensadora. As realidades paralelas surgem pela primeira vez em pontos diferentes das 2h19 do filme, mas o efeito desse escalonamento não é episódico, e sim cumulativo. É como o que as irmãs Wachowski e Tom Tykwer fizeram em A Viagem, lá em 2012: as múltiplas histórias que o filme conta se comunicam de forma mais instintiva e emocional do que lógica, e se enredam tão profundamente que os cortes constantes entre uma e outra não parecem desorientadores, mas simplesmente… certos.
Uma vida de Evelyn informa e enriquece a outra, tanto literalmente (nas habilidades que ela empresta de suas versões alternativas) quanto simbolicamente, narrativamente. Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, como A Viagem, só cresce e só ganha com cada novo absurdo que adiciona ao seu gabinete de curiosidades. Fazer os personagens cantarem algumas linhas de diálogo sem nenhum compromisso com transformar o filme todo em um musical? Claro! Esbanjar cenas de ação inspiradas pelos clássicos do cinema de Hong Kong, muitos deles estrelados pela própria Michelle Yeoh, ou pelo astro-maior da era Jackie Chan? Por favor! Um universo em que todo mundo tem dedos de salsicha? Vamos nessa!
Na direção, os Daniels abraçam esse aspecto caleidoscópico do filme com entusiasmo exemplar. Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo pode ser visto como uma grande homenagem ao cinema asiático - não só o de artes marciais, que inspira as cenas de ação, como também os tokusatsu à la Kamen Rider e Super Sentai (os Power Rangers originais japoneses), referência óbvia para os figurinos da vilã Jobu, e até os dramas românticos de Wong Kar-Wai, modelo estético para todo um segmento do longa. O grande feito dos cineastas é conjugar tudo isso em uma única massa de narrativa pop, e entender que essa bola de neve de referências pode realçar, ao invés de eclipsar, a humanidade da história.
Falar de arte na arte não nos impede de falar da vida nela, e por que impediria? A arte já está, afinal, tão entrelaçada com as nossas vidas… Tudo em Todo o Lugar transborda humanidade em sua piração conceitual e visual, porque entende que a bagunça infinita do multiverso não é nem um pouco diferente da bagunça infinita que existe dentro de cada um de nós. É justamente essa compreensão que permite que o elenco brilhe tanto, em sua intensidade uniformemente doída: da desesperança performática de Stephanie Hsu aos cacoetes adoráveis de Ke Huy Quan, ambos brilhantes, tudo deságua mesmo na honestidade brutal e sábia do rosto exausto de Michelle Yeoh, entregando a atuação mais extraordinária de uma carreira que já merecia, há muito tempo, esse adjetivo.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é um épico de ação alucinante sobre como as felicidades mais simples e passageiras são as mais importantes, especialmente em meio a dor inesgotável do mundo. É uma história boba, e audaz, e hilária, sobre as verdades mais intrínsecas e difíceis do que é estar vivo. É um testemunho de como somos pequenos e idiotas, mas também de como os nossos amores são gigantes e sublimes. Todas as suas contradições, mas especialmente essas, não o fazem intragável ou incoerente… só o fazem mais rico, mais bonito e mais humano. Quando foi que paramos de querer que nossa arte fosse tudo isso?