Perfeccionista ao extremo, sobretudo em seu casamento com a música, o violinista Laerte, protagonista de Tudo Que Aprendemos Juntos, treme (e falha) em sua audição para uma vaga na Osesp nas sequências iniciais do novo longa-metragem de Sérgio Machado. Errar é um verbo ausente de seu vocabulário, tal qual o substantivo perdão, sobretudo quando aplicado a si mesmo. É de sua índole converter derrotas em comida para seu orgulho, escudando-se nele, avesso ao carinho dos colegas de instrumento. É no ápice do orgulho que o personagem vivido por Lázaro Ramos chega a um projeto escolar em Heliópolis, na periferia de São Paulo, necessitado de um emprego: no caso, o de professor, para ensinar rudimentos musicais a um grupo de adolescentes em vias de se apresentar para uma Ong.
Audacioso quando o assunto é Paganini, mas temeroso frente à dificuldade dos acordes de Bach, Laerte cresceu pobre na Bahia e teve chance de estudar violino quando pequeno com o apoio do pai (expresso apenas na voz de Milton Gonçalves). Figuras como ele são frutos do redesenho sociológico do Brasil tracejado a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em novembro de 2002: ele é conseqüência de um rearranjo da pirâmide social do país, com o desequilíbrio da classe média e a ascensão das parcelas C e D da pirâmide populacional. Com o acesso destas ao consumo, elas passaram a se subjetivar aos olhos da arte, sobretudo do cinema, que deixou de ver essas classes apenas quantitativamente, como números de censo, e passou a vê-las sob um prisma qualitativo, entendo suas angústias suas necessidades. Dessa operação surgiram personagens como a doméstica Val, vivida por Regina Case em Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Val e Laerte têm, portanto, uma parentela sociológica.
E mais: ambos os filmes despertaram o apreço estrangeiro antes de brilhar aqui. Que Horas... foi parido em Sundance e fez seu teste do pézinho em Berlim. Já Tudo Que Aprendemos Juntos nasceu no Festival de Locarno, na Suíça, em agosto, e veio pegar sua certidão de filme 100% brasileiro na Première Brasil do Festival do Rio, em uma projeção emocionada. A emoção é mérito de sua edição – impecável ao equilibrar as viradas de um roteiro atento à tradição do filão favela movie, mas jamais refém dela– e também da identificação com as feridas geopolíticas retratadas a partir de Heliópolis.
Na tela, a região não é isolada como um lugar mítico: ela é apenas um retalho dentro de um tecido político afogado entre o comércio da cocaína, golpes com cartões de crédito e embates entre policiais e traficantes por pertença e dominação. É ali que Laerte cai, a contragosto, sendo obrigado a ensinar uma turma a respeitar a música e a dominar seu léxico. Mas Sérgio Machado não cai na armadilha de fazer mais um drama sobre a Educação, como foram fenômenos populares como O Preço do Desafio(1988), com Edward James Olmos, ou Meu Mestre, Minha Vida (1989), com Morgan Freeman. Laerte não é um super-herói da pedagogia, tampouco um anjo redentor de guris pobres. Heliópolis necessita dele tanto quanto ele em Heliópolis. E a atuação de Lázaro (correta, mas sem a iluminação habitual) ajuda a demarcar essa condição.
Tão grande quanto o brilho dele é a luminosidade de seus alunos, retratados por Sérgio Machado numa estrutura quase documental, na qual uma briga entre duas meninas soa de um realismo às raias de um pegapracapar ao vivo das ruas. Dilemas dos estudantes alcançam no roteiro (erigido com o apoio da autora de novelas Maria Adelaide Amaral e do cineasta Marcelo Gomes) uma condição quase equivalente à jornada de superação de Laerte, dificuldade pela intervenção de um traficante todo-poderoso interpretado pelo rapper Criolo. O alçapão mais fundo foi aberto para o aluno Samuel (vivido com esplendor por Kaique de Jesus), ameaçado de ter que abrir mão do violino para ajudar o pai a trabalhar. Ele é um satélite que garante dinamismo à evolução de Laerte como sujeito e como artesão da música.
Impressiona a maestria como a direção de Sérgio Machado consegue passar de um (divertido) duelo de músicos a sequências de perseguição sem descambar para o artificialismo. Impressiona mais ainda como o realizador de Cidade Baixa (2005) dribla o chororô e a sacarose ao flertar com o melodrama, construindo cenas comoventes, mas nunca apelativas. E tudo isso se dá sob a embalagem da fotografia de Marcelo Durst, que se impõe pela beleza de sua iluminação, flertando ora com a textura do videoclipe, ora com a epiderme documental, num longa de beleza visual e pujança narrativa. Uma das melhores surpresas do cinema nacional recente.