A premissa básica de Um Cadáver para Sobreviver (Swiss Army Man, 2016) cativa o espectador pelo estranhamento. Hank (Paul Dano), um homem há tempos perdido em uma ilha deserta, está prestes a se matar quando encontra um cadáver (Daniel Radcliffe) na praia. O corpo, apesar de sem vida, ainda solta gases em uma potência alta o suficiente para ser usado como um jet ski e levar Hank para longe da ilha.
Os primeiros cinco minutos do filme são suficientes para determinar o tom absurdo e pueril no estilo surreal de um Michel Gondry. Além das flatulências de grande propulsão, Manny - o cadáver - começa a falar, tem ereções que apontam o caminho e ainda se mostra uma eficiente metralhadora. O novo companheiro não só renova as esperanças de sobrevivência de Hank como é um meio através do qual ele revela sua personalidade. No extremo do desgaste psicológico, Hank projeta em Manny suas fantasias e vai descobrindo a si mesmo à medida que interage com o morto.
O diálogo, aliás, é outro grande trunfo dos diretores e roteiristas Dan Kwan e Daniel Scheinert, claramente influenciados pela dramaturgia teatral de Samuel Beckett. Manny, em sua sinceridade ingênua, colabora com a evolução pessoal de Hank quando traz reflexões sobre sexualidade, família e cultura pop. Ainda através da fala, Hank e Manny, em diversos momentos, improvisam sobre uma melodia cuja letra original Hank não consegue se lembrar. As canções inventadas expõem diferentes climas sentimentais e são uma ótima ferramenta para desvelar o personagem por dentro.
Imerso e entregue no ambiente imaginário, em um retrato sensível de auto-conhecimento através da miséria humana, o espectador talvez se choque com a virada para o terceiro ato. Não que o filme devesse responder todas as ambiguidades que levanta desde o começo - estaria Hank de fato vivenciando tudo aquilo? Seria a relação de Hank e Sarah uma obsessão transgênera, em vez de uma paixão platônica? -, mas neste momento a história começa a confundir mais do que esclarecer. Dessa forma, por gerar um movimento de distanciamento, o final não é tão emocionante quanto poderia. Ainda assim, é marcante a evolução que os personagens apresentam - agora é Manny quem carrega Hank nas costas - e é notável a mudança de significado dos gases nas últimas cenas: no primeiro peido você ri e no último, você chora.