É certo escalar um ator que não tem deformidades no rosto para interpretar, com uso de maquiagem, um homem com neurofibromatose? E decidir escalar um ator para esse tipo de papel apenas porque ele tem a condição? O que é ético? O que não é? Onde a representatividade se transforma em exploração? Onde a humanização passa a ser vitimização? Encarar isso é um desafio, mas Um Homem Diferente faz tudo parecer fácil.
Graças ao rigor do diretor e roteirista Aaron Schimberg na hora de controlar clima e tom, este filme meio drama kaufmaniano, meio comédia de pesadelos nunca parece afetado pela fragilidade inerente a este tipo de proposta. Pelo contrário, o longa se alimenta da energia desconfortável gerada por essas situações, corretamente identificando o escape de risadas nervosas como forma de encenar e antecipar qualquer tipo de reação. Se ofendeu? Se emocionou? Não sabe como responder? Tudo isso é estampado nas cenas imprevisíveis e criativas postas por Schimberg ao contar a história de Edward.
Um ator aspirante que sofre com neurofibromatose, Edward – assim como seus colegas com alguma deformidade – só consegue papéis em comerciais corporativos feitos para ensinar pessoas como tratar bem pessoas com essas características no ambiente de trabalho, o primeiro de muitos cenários que nos faz questionar se algo é bem-intencionado ou só sem noção. Então, pouco após conhecer, se aproximar, se apaixonar e eventualmente ser rejeitado pela sua nova vizinha, Ingrid (Renate Reinsve), ele decide aceitar um tratamento experimental que pode diminuir os tumores em seu rosto.
O processo é mais assustador do que Edward poderia imaginar, mas o resultado é melhor do que seus maiores sonhos. Em sequências nojentas o suficiente para deixar uma dobradinha A Substância/Um Homem Diferente ainda mais interessante (não faltam paralelos temáticos sobre imagem e beleza), as camadas de pele começam a descascar e, ao fim de noites de choro e sofrimento, Edward descobre o rosto de Sebastian Stan debaixo daquilo tudo. Se parecer com um herói da Marvel muda a vida de Edward da noite pro dia, literalmente. Ele é outra pessoa – sexualmente, profissionalmente e até nominalmente. Após fingir sua morte, ele passa a se chamar Guy e parte em busca de um novo começo.
A24/Clube Filmes
A virada pode parecer um grande spoiler, mas o mérito do roteiro de Schimberg vem em usar isso como ponto de partida para complicar sua premissa ainda mais. Eventualmente, “Guy” descobre que Ingrid está preparando uma peça baseada em suas interações com Edward, e num dos vários truques metalinguísticos do filme, coloca uma máscara com seu antigo rosto para interpretar o personagem. Ele ganha o papel, e depois a garota. Mas não satisfeito com a piada (ou seria crítica?) de colocar o queixo hollywoodiano de Stan novamente debaixo de uma espécie de disfarce, Schimberg dá um passo a mais ao introduzir Oswald, e leva Um Homem Diferente a outro patamar.
Interpretado por Adam Pearson (que realmente tem neurofibromatose) como um relâmpago com eletricidade o suficiente para dar vida ao monstro de Frankenstein, Oswald é tudo que Edward não era. Apesar da condição, ele é confiante, extrovertido e curiosamente sexy. E apesar de não ser ator, ele rapidamente se mostra ideal para a peça, e para Ingrid. Seria Oswald, então, a prova que o interior pode compensar pela aparência? Não seria Guy mais adequado para protagonizar a história, já que ele era Edward, ou ele perdeu isso ao perder seu antigo rosto?
Novamente, somos bombardeados de perguntas sem respostas fáceis, e Schimberg transforma essa incerteza numa arma. O diretor quer justamente nos deixar sem pés firmes, e aproveita a busca por conscientização da sociedade pós-moderna como uma armadilha para alcançar esse objetivo. Uma vez estabelecida, a angústia de não saber o que pensar vira porta de entrada para o humor incômodo que simultaneamente serve para aliviar a experiência, deixando o filme estranhamente divertido, e sublinhar a falta de garantias oferecidas por Um Homem Diferente.
Neste labirinto de questões, o filme até sofre para trocar de marcha, mas por mais que haja uma sensação de estagnação depois da entrada de Oswald – Schimberg parece satisfeito em repetir as dinâmicas entre o trio principal em diferentes situações cômicas, e não escancarar o drama final que viria se Guy revelasse tudo sobre seu passado –, o prazer macabro de ver Stan, Reinsve e Pearson navegando esse triângulo (amoroso?) é mais do que suficiente para sustentar a reta final Um Homem Diferente.
O ex-Soldado Invernal é uma revelação de comédia corporal, e um gênio em fazer as caras e bocas de alguém ciente do absurdo cósmico que sua existência virou, o que oferece o espaço ideal para o carisma de Pearson transbordar. Entre os dois, Reinsve vive um tipo de representação do público através de quem Schimberg pode literalizar tudo que o filme gera em nós, e então rir da gente. Essa brincadeira culmina numa última cena que recontextualiza o desejo de Guy/Edward, assim como sua admiração por Oswald e Ingrid.
A24/Clube Filmes
É uma despedida perfeita para um filme que leva a ideia de “as aparências enganam” até o seu limite, e então supera tudo isso destruindo a quarta parede não para entupir o filme de auto referências, mas sim para derrubar de vez a barreira entre obra e espectador. O que é gerado em tela, nos personagens, também acontece em nós. Um Homem Diferente não deixa nenhuma saída fácil, e nos convida ao tipo de diversão que parece errado, mas que é simplesmente irresistível.
Exibido na Mostra SP, Um Homem Diferente estreia em 12 de dezembro no Brasil.