Apostando em uma zona cinzenta entre o drama e o suspense psicológico, Uma Garota de Muita Sorte fracassa tanto por sua impotência dramática quanto pela promessa de um plot twist sombrio que nunca de fato chega. A adaptação do livro homônimo de Jessica Knoll para a Netflix desperdiça a oportunidade de trazer pautas sensíveis e atuais, entregando apenas uma sequência de clichês, seguidos por uma conclusão simplista.
Prova cabal de que não basta uma narrativa de empoderamento e superação de uma personagem feminina levemente sinistra para reproduzir o sucesso de Garota Exemplar (2014), filme de David Fincher baseado na obra de Gillian Flynn, Uma Garota... perde credibilidade ao tentar, tardiamente, surfar na onda do #MeToo, sem qualquer compromisso real de dialogar com a difícil realidade vivida pela protagonista.
Na pele de Ani FaNelli, Mila Kunis vive uma mulher que parece ter tudo: o noivo (Finn Wittrock) bem-sucedido de uma família afluente e tradicional, a aparência impecável, a carreira em ascensão para o cargo de seus sonhos, e a vida confortável e elegante em Nova Iorque que sempre quis. Nada disso, contudo, é suficiente para fazê-la esquecer dos traumas de seu passado, aos poucos introduzidos na trama na forma de flashbacks de sua adolescência, à moda de 13 Reasons Why. Somos apresentados a duas versões de Ani: uma delas em seus monólogos que conduzem o enredo - angustiada, arredia e obcecada com o sucesso - e a outra em sua persona pública que sempre sabe o que fazer e dizer para cumprir as expectativas de todos à sua volta.
Quando é abordada por um documentarista interessado em ouvi-la como uma das poucas sobreviventes de um fatal tiroteio escolar, Ani começa aos poucos a confrontar seu silêncio sobre sua própria história. Revisitando as memórias conturbadas dos episódios de sua adolescência que definiram sua personalidade fraturada, a protagonista revela os terríveis abusos aos quais foi submetida em sua juventude e se vê obrigada a finalmente encarar seu mais cruel agressor, também sobrevivente do incidente na escola.
Ainda que se proponha a colocar no centro da história a experiência de superação de uma sobrevivente de violência sexual, tal como de estender a mão a tantas outras que vivem sob o mesmo medo e silêncio de Ani, o longa desliza lamentavelmente ao incorporar uma variedade de graves e urgentes questões de nosso tempo sem conseguir de fato lidar com nenhuma delas em profundidade. Controle de armamentos, preconceitos sociais e bullying nas escolas são alguns dos temas levantados, todos amarrados pela solidão e o desamparo compartilhados por vítimas que não encontram a quem recorrer.
Não há como negar o mérito de toda e qualquer iniciativa que rompa o silêncio e desnaturalize as contínuas violências que atravessam a vida de sobreviventes como a da personagem de Kunis, mas há de se reconhecer que Uma Garota de Muita Sorte o faz de forma maçante e pouco original, quiçá irresponsável. Jamais entregando o aguardado plot twist que parece estar anunciado desde o início, o longa parece assumir que a libertação de Ani pelo enfrentamento de seu abusador não passa de uma questão de resiliência, ignorando os privilégios conquistados pela protagonista em sua vida adulta e reforçando perspectivas tradicionais de gênero.
Apesar do louvável esforço de Kunis na construção da personagem, a mesma se perde entre a aparência de frieza e uma suposta sensibilidade reprimida, ambas mal representadas a ponto de inibir qualquer princípio de empatia. Desperdiçando o potencial do clima de suspense e fúria introduzido a conta-gotas na história, se a produção render bons resultados no catálogo será apenas às custas de uma temática provocativa, embora fatalmente mal abordada - seja por falta de coragem, ou de sorte.